Inocência
Solange Amado
Chamava-se Maria do Céu, mas me presenteou com as penas do
inferno. Éramos certamente, precoces, magrelas, miúdas, pernas finas e
andávamos sempre juntas, indo e voltando da escola. As semelhanças paravam por
aí. Duas garotas de seis anos, ávidas e curiosas, começando a dominar o mundo
das letras e dos garotos. Mas enquanto eu criava desde muito pequena o estranho
vício de devorar livros e de frequentar a biblioteca pública da minha cidade,
que era ao lado da escola, e ia jogar bola de gude com os meninos, andar
descalça e solta com um grupo de moleques, pra desespero dos meus pais, ela, ao
contrário, era uma “mocinha”, vaidosa, coquete, altamente sensualizada.
Enquanto meu mundo era o faz de conta das reinações de
Narizinho e minha imaginação era povoada de bichos falantes e as inocentes
aprontações do Sítio do Pica Pau Amarelo e os contos de fadas, a atenção dela
estava sempre voltada para os aspectos, digamos, mais “salgados” da relação
homem-mulher.
Não que me passassem despercebidas as diferenças anatômicas
entre homens e mulheres, mas elas passavam meio que ao largo de mim. Homem era
um ser esquisito, que trazia uma protuberância na parte da frente das calças e
tinha uma atitude belicosa e uma necessidade compulsiva de domínio. Pra falar a
mais santa das verdades, eu não gostava muito das brincadeiras desses seres com
características um tanto estranhas, preferia brincar com minhas bonecas, mas só
o fazia sozinha, no fundo do meu quintal. Alí eu era dona de casa e mãe de um
montão de minúsculas bonequinhas compradas (em segredo) na venda da esquina.
Alí, nenhum garoto abelhudo penetrava; mesmo porque, se eles desconfiassem
daquele meu “vício solitário” nunca mais me dariam espaço na patota dos machos,
aliás, frequentemente eu tinha de recorrer a alguns tabefes pra convencê-los a
me permitir jogar com eles uma partida de finca ou bolinha de gude. Do futebol
eu pendurei as chuteiras bem cedo e me contentei a apreciar de longe. “Matar a
bola no peito” era um dos problemas que me impediam de participar daquela
selvageria.
Além do mais, constituía uma humilhação, quando os garotos
marchavam em grupo, unidos venceremos, pra fazer xixi na beirada do campo.
Comigo essa operação era mais complicada, e eles estavam sempre querendo ver a
minha bunda. Aliás, àquela época, eu pensava que a única função do apêndice
masculino era de poder fazer xixi em pé, o que já era, diga-se de passagem, uma
vantagem gigantesca, e uma fonte permanente de inveja, que eu tentava encobrir
, enfrentando-os ombro a ombro, com a belicosidade de uma maria tomba homem,
como minha mãe vivia observando, quando eu aparecia arranhada e suja de volta
pra minhas “filhas” no fundo do quintal. Uma verdadeira esquize infantil.
Enquanto isso, na sua relação com os meninos, Maria do Céu
preocupava-se em jogar os cabelos de um lado para outro, vestidinhos de babado,
olhares de bonequinha e observações maliciosas sobre os atributos masculinos
dos frangotes que cruzavam nosso caminho. Tanta feminilidade causava quase orgasmos
múltiplos nas mães das colegas.
Um dia, lá íamos nós duas pela rua, a caminho da escola,
quando ela me perguntou de supetão: “Sabe o que seu pai faz com sua mãe de
noite, na cama?” Estaquei: “Dormem, uai!” Óbvio, né gente? Então, destilando
superioridade por todos os poros, ela cochichou no meu ouvido, o impensável.
Tomei a única atitude que se pode tomar quando alguém conspurca
a honra dos seus pais: dei uma gelada completa nela. Era caso de internação,
ameacei contar para a professora, a diretora, o médico de plantão. Trepei nas
tamancas. Fim de papo.
Ou melhor, seria o fim, mas o micróbio da dúvida já havia se
insinuado no meu cérebro. No fundo, no fundo, eu já desconfiava que aquela
maldita torneirinha devia ter algumas outras funções. Só xixi não
explicaria tanta preferência do criador.
Daí, fiz uma marcação cerrada. À noite, eu esperava a casa
ficar em silêncio, me levantava pé ante pé, abria a porta do quarto dos meus
pais, que nunca estava trancada por causa dos meus irmãos ainda muito pequenos
e me escondia num cantinho.
Foi aí que a santidade dos meus pais foi para o espaço. Esse
estupro da minha inocência foi tanto maior porque meu pai me descobriu atrás do
armário, fez um escarcéu e me levou de volta pra minha cama, literalmente pelas
orelhas.
De qualquer maneira, não dei o braço a torcer. Não fiz as
pazes com a Maria do Céu até hoje. E passei a desconfiar que há sempre coelho
no mato dessa dupla macho-femea.
Partiu-se a minha inocência. Instalou-se a dúvida.
Maria do Céu se
esfumou na distancia e no tempo. Mas ainda me sinto traída. Todo aquele
falatório sobre não ser de bom tom meninas se misturarem com meninos e as
coisas malsãs que poderiam acontecer, e eles fazendo todas as noites, coisas
pra lá de malsãs debaixo dos lençóis. É isso. Acho que descobri a origem, o
ponto focal, o santo graal das minhas idiossincrasias.
Maria Solange Amado Ladeira 18/04/14
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