Histórias macabras
Solange Amado
Pequenininha. Mirrada. Olhinhos vivos, observadores. Um só
dente na frente, um divertido e trágico furador de jabuticaba. Uma história
sofrida. Carregava dor até no nome: Dorcelina. Impossível calcular a idade.
Tinha mais ou menos uns 120 anos aos meus olhos infantis. Era o faz-tudo da
minha casa: babá, lavadeira, passadeira, cozinheira de quitutes e sobretudo,
grande contadora de histórias. Especialista em almas do outro mundo.
No quartinho dos fundos da minha casa, enquanto passava roupa
com um pesadíssimo ferro em brasa, o dentinho único brilhando como uma estrela
solitária na noite, contribuindo com um cenário um tanto lúgubre para a chegada
das assombrações, a criançada em volta com arrepios de medo, ela iniciava seu
relato com caras, vozes e bocas de almas penadas.
À medida que as almas do outro mundo iam se achegando com o
desenrolar da história, uma adrenalina de Zé do Caixão tomava conta de mim, e
algo assim como encantamento e horror dominava a plateia. Ninguém ousava
atravessar o terreiro e entrar em casa sozinho. Se uma das crianças tinha de
fazer xixi, saiamos agarrados uns nos outros, todos incorporados ao banheiro,
com a babá protetora escoltando o batalhão, pronta a enfrentar qualquer alma
penada que quisesse interromper aquela marcha estropiada.
Mas o que desestabilizava mesmo aquele bando de cagões
noturnos, era o fato de que estávamos em desvantagem naquele confronto com o
mundo do além. Era uma luta inglória. Estávamos alí, no olho do furacão, como
cegos em tiroteio. As criaturas nas sombras estavam sempre de olho em nós, mas
nem o cheiro delas a gente sentia, nem podia enxerga-las. Aqueles olhos de
lince estavam sempre postos em mim, noite e dia, à procura de vingança. Olho
por olho, dente por dente. Qualquer sacanagem que eu aprontava (e eram
muitas!), do além túmulo, alguma criatura vinha puxar a minha perna.
Nunca me livrei completamente desse olho nas sombras. Até
hoje, pelo sim pelo não, nunca durmo com os pés descobertos. Vai que uma
assombração bota reparo neles?
Essa thriller macabro da minha babá me causava um tal
frisson, que durante toda a minha infância, e bem além da adolescência, eu
padeci de crises terríveis do que a psicologia chama de “terror noturno”, mas
que minha família denominava de “exacerbação de frescura noturna”. Afinal, era
à noite que o incansável olho mágico das almas penadas vinha pedir conta das
minhas escorregadelas durante o dia. De vez em quando, a babá dava um refresco
e garantia que se eu rezasse três Ave Marias todas as noites, sem faltar
umazinha sequer, eu lograva afastar os fantasmas olhudos de cima de mim e
exorcizaria D. Morte com sua imensa foice me espiando pensativa.
E toca eu a rezar com uma fé que removeria todas as montanhas
de Minas. Não adiantava muito esse fervor, filho do medo, porque nos meus
sonhos, a cambada de almas penadas dava um jeito de aparecer.
Todas as vezes que meus pais tinham que se ausentar para
algum programa noturno ou uma viagem, nós embarcávamos naquele thriller
sinistro e fascinante.
Até que um dia, tarde da noite, no meio de uma sessão
particularmente aterrorizante da histórias de assombração, nossa geladeira lá
na cozinha deu um curto, ela uivava, estralava, botava fogo pelas ventas numa
autêntica trilha sonora de “Carrie, a estranha!” Foi um Deus nos acuda! Babá e
crianças se trancaram no quartinho e botaram a boca no mundo em diferentes
diapasões. Vizinhos acorreram de todos os lados, de pijamas, de camisolas, a
rua inteira veio ajudar. Até que um macho heroico arrombou a porta, desligou a
geladeira e nos encontrou trêmulos e acuados no fundo do quartinho.
Foi só nesse dia que meus pais ficaram sabendo e botaram fim
àquelas sessões de histórias macabras. E se querem saber, até hoje, em certas
noites, não consigo pregar o olho, sentindo em mim o peso do olhar comprido de
alguma criatura das sombras, insatisfeita com minha vida pecaminosa.
Vocês podem pensar que elas não existem, mas minha babá
sempre garantiu: que las hay, las hay.
Maria Solange Amado Ladeira - 17/05/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário