Escrever a escrita


Escrever a escrita
Solange Amado
“Escrever é saber resistir à escrita”. Foi Marguerite Duras que me ensinou isso. E é o que tenho feito desde sempre: resistir à escrita. Talvez por isso mesmo, por essa coisa de escrever, eu tenha me livrado daquela velha história “ela saiu à escrita”.
Então, estão avisados, não sou cópia xerox de ninguém, porque eu me invento todos os dias. Há dias em que eu sou simpática; em alguns dias também posso esparramar uma perversãozinha básica no papel, e ainda há alguns dias mornos e lânguidos em que eu fico sexy, pelo menos sexy...genária. Afinal, se é cada um no seu quadrado, o meu é o quadrado do papel, que em geral, é na verdade, um retângulo, mas isso é um mero detalhe, posso sempre cortar um pedacinho. Aliás, já nasci com esse pedacinho cortado. Aí vocês podem argumentar que isso é algo inexorável. Maktub. Está escrito. Uma vez mulher sempre mulher. Pode ser, até concordo. Não tenho nada contra, já vou avisando. Mas mulher é que nem japonês, dizem que não existe japonês individual. Mulher é assim meio origami, se dobra e se desdobra em mil e uma utilidades, ou representações, pra ficar mais delicado.
Se estão me acompanhando, já entenderam que só uma folha de papel já dá pra gente mil e uma possibilidades. Já é muito, mas não bastou. Descobri as letras. E descobri que podia cruzar as letras com o papel e esse ato de amor podia gerar filhotes. Foi aí que eu ME GEREI. Baguncei o coreto. Saí dos trilhos de mim.
Pois é, desde então me lambuzei. E nasço a cada dia. Não há limites para o escrever.E pra não cair na escrita do maktub, não consigo mais parar. Posso até ter o pedacinho cedilha do homem nesse meu escrever. Posso até voar se quiserem, porque alma voa, alma não tem sexo, padronização, fronteiras ou limites. Alma tem é um tesão danado. E é com ela que eu escrevo. Eu megero a cada dia, quando sou “má” fugindo à escrita, quando me desvio do que alguns chamam de correto ou bonito, quando meus parâmetros ficam meio bambos e as letras escapam meio desordenadas, seminuas papel afora. Eu tento segurar, mas não o faço por incompetência ou por preguiça ou porque não quero notar quando elas me passam a perna. Tenho inveja da liberdade delas. É isso.
Quem sabe quando comecei a minha vida pregressa de escrevinhações? Não sei. Acho que desde o instante em que nasci comecei a fugir da escrita. E nessa fuga encontrei as palavras; elas também estavam fugindo, como descobri logo. E nos identificamos. Não foi bem amor à primeira vista. Não foi nada bombástico. Não vi estrelas ao meio dia, os sinos não repicaram quando eu e as palavras nos encontramos. Nós nos vimos, nos reconhecemos, nos encaixamos de imediato, com naturalidade, com leveza, já éramos amigas para sempre antes de nos conhecermos. E só sei que isso é incurável. São elas que ao me habitar me levam para longe do espaço escuro de mim. Me dão um refresco dessa sina de ser sempre eu mesma, que esta sim, é inexorável.
Até onde isso vai me levar? Quem sabe? Esse é um espaço sem garantias, sem certezas. Uma invasão de terras. Uma casa da mãe Joana. É assim a minha relação com as letras. Elas entraram, se instalaram, se inscreveram, me escreveram. E vamos vivendo felizes para sempre. E como o sempre acaba à meia noite, minha carruagem acaba de virar abóbora. Hoje não dá pra dançar mais. Já tirei o band  aid do calcanhar, tomei uma sopa quente de letrinhas e nos recolhemos ao leito. Eu e as palavras.
E não me perguntem mais. No momento estamos discutindo a relação.




Maria Solange Amado Ladeira           19/05/15



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