De poemas e cromossomos
Solange Amado
Definitivamente, a natureza me fez mulher. Mas não sei se foi
uma boa ideia. Detesto regras. E estas, definitivamente, pertencem ao universo
feminino. Não. Não estou me referindo àquele negócio de sangrar todo mês.
Claro. Isso também vem no pacote da feminilidade, mas mais especificamente,
estou me referindo àquela coisa de recato, sensibilidade, delicadeza, lirismo,
romantismo e outras milongas feminis.
Quando criança eu era uma criatura meio errante, e nunca
fazia uma divisão politicamente correta entre universo feminino versus
masculino. Era mais assim como a Emília, a boneca desengonçada do sítio do
Picapau Amarelo. Quando meus primos homens se recusavam a me deixar entrar numa
brincadeira dita lá entre eles de “coisa de homens”, eu botava o dedo no nariz
deles e ameaçava acabar com a festa. Em 100% dos casos, eles ficavam
convencidos. Daí a suspeita da minha tia, mãe deles (mãe é mãe!), de que no
futuro, meu lado feminino seria definitivamente afogado pelo tsunami que era o
lado masculino da minha personalidade.
Aí veio a adolescência. Entrei de cabeça nos livros de M.
Delly, onde as mocinhas invariavelmente se apaixonavam por cafajestes loiros,
altos, de olhos azuis, que as tratavam com bota e espora. E aquelas meigas e
delicadas criaturas sofriam tanto com as dores do amor que se esqueciam de
comer, emagreciam, ficavam frágeis e desmaiavam só de ouvir a voz daqueles
deuses cruéis que transitavam pelo Olimpo feminino. Virou meu sonho de consumo
essa mulher lânguida, moribunda e sofredora.
Nessa época, meu gineceu ameaçou engolir o androceu. E só não
aconteceu porque, por algum defeito na combinação dos cromossomos XX, essa
fragilidade nunca foi o meu forte. Pra meu desespero, amor fracassado sempre
despertou o meu apetite. E pra minha decepção, as paixonites da minha juventude
nunca despertaram a delicada garça que existe em mim. Mas a onça pintada, essa
sim, saía do sério com o cutucão do sofrimento amoroso.
Demorou um pouco, mas acabei desistindo do curdistão bravio,
com seus homens e cavalos selvagens. Já bastava o meu eu sedento e desembestado
por esse deserto mineiro.
É isso. Não sei se essa minha história de amor e sofrimento explica ou justifica essa realidade cruel: não sei fazer poema. O poema
pertence à delicadeza do gineceu. Mesmo se tem personalidade forte, ele anda na
ponta dos pés, tem gestos contidos, dignos, sensíveis. Nunca deve botar o dedo
no nariz de ninguém pra abrir caminho.
Sei não. Minhas palavras andam num tropel ruidoso, botam a
cara à tapa. Pisam forte. Não... penetram na folha com decisão e suavidade
necessárias ao prazer do leitor. São mais assim como um estouro da boiada.
E tenho de confessar, na hora de escrever, é uma baixaria.
Por mais que eu me encha de boas intenções de paz e amor, termino em luta
corporal com as palavras. Eu e as palavras. Questão de cromossomos. Cromossomos
iguais! É uma queda contínua de braços. Mas, se querem saber, eu gosto delas,
especialmente das mais rebeldes e topetudas.
Outro dia, recebi um email de um amigo a respeito de um texto
meu que continha a palavra merda: “Seu texto é ótimo. Poderia ser um poema. Mas
eu tiraria a palavra “merda” (assim mesmo, entre aspas). É muito chocante!”
Nem pensar. A merda fica. Eu parto pra briga. Fico sem o
poema, mas a merda fica. Ela se ajeitou alí. Foi corajosa o bastante pra vencer
meus argumentos, o constrangimento de quem quer que seja e se colocou gloriosa,
maria aparecida, no centro da folha. Perco o poema, mas não perco a merda.
E na verdade, isso aqui nem era pra ser mesmo um poema. Será
uma merda? Quem sabe?
Maria Solange Amado Ladeira 21/10/14
www.versiprosear.blogspot.com.br
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