De lava jatos e propinas
Solange Amado
Querido diário: ursos hibernam no inverno, eu, ao contrário,
vivo planejando hibernar no verão, quando o sol envolve a terra num abraço
incendiário, o asfalto pega fogo e a calçada derrete. É aí que meu cérebro dá uma
amolecida, minhas glândulas sudoríparas
são ativadas e meu bom humor vira fumaça. E eu invejo lady Godiva. Gostaria de
montar nua em pelo, num cavalo branco e ficar trotando por horas, as vastas
instalações do meu apartamento. O vizinho de baixo não vai reclamar do tropel
incômodo, porque ele é do time dos suicidas que todos os dias, enfia as pernas
nas lavas do vulcão asfalto. Ele já entregou a alma pra Deus. Eu ainda me sinto
indignada.
Foi assim, querido diário, com a perspectiva de um verão
econômico de lápis no vermelho, que abri meus olhos para a luz do dia hoje.
Ligar a televisão logo ao amanhecer foi
um gesto suicida, mas eu o fiz. Só um pequeno masoquismo em tempos de 50 tons
de cinza, não chega a ser uma escolha.
Na China, cada casal tem direito a ter 1 filho. Nossa
Constituição é mais generosa, permite que cada cidadão cultive duas
perversõezinhas: a primeira, e obrigatória é desviar e lavar dinheiro. Desde
pequena aprendi a dar banhos esporádicos nas moedas do meu cofrinho. A segunda
perversão fica à escolha do freguês. E nós, brasileiros somos muito criativos
nesse quesito.
De cara, a televisão me conta que um ônibus cheio de refugiados
mortos, não entendi de qual país, foi encontrado numa estrada da Áustria, um
pai espanca seu bebê de 4 meses até à morte porque ele chorava muito... de
fome; Collor ameaça entregar os outros 40 ladrões da sua quadrilha; tem alguém
nos EEUU praticando tiro ao alvo em jornalistas. Corro e escondo meu diploma,
pelo sim pelo não. No meio desse samba do crioulo doido, a lava jato continua
bombando. Já cavou até o centro da terra, mas o dinheiro não aparece. E eu nem
sei mais qual delação levou bomba e qual foi a premiada.
A coisa tá nesse pé e nesse humor, querido diário, quando
resolvo, apesar dos meus planos de lady Godiva, vestir a minha fatiota,
enfrentar esse manicômio geral e desenferrujar as juntas na fisioterapia
diária. Desgraça pouca é bobagem.
Dizem que o tratamento
de beleza mais barato é o sorriso, e em tempos de recessão técnica,
convém utilizá-lo, mesmo porque os outros nunca funcionaram. Amarro na cara um
sorriso de Miss na passarela e vou enfrentar o mundo. Não demora e minhas
piores suspeitas se concretizam: minha vizinha entra no elevador carregando seu
pequinês de estimação. Ele arreganha os dentes e rosna para mim. Nós nos
odiamos cordialmente há anos. É um cachorro idiota que sai cheio de fitinhas e
lacinhos e sapatinhos. Quero mais é que ele se afogue no pântano do asfalto
quente. Um patricinho de merda. Mas o sorriso não descolou da minha face. E
resiste. Mesmo depois que a dona do restaurante em frente reclama dos clientes
sem noção. A pia que construiu com todo o capricho para que eles lavem as mãos
antes de se servirem, está sendo usada para fins excusos: tem um velhinho que
lava alí, caprichosamente a sua dentadura, os jatos respingando nos alimentos,
tem a mãe que outro dia lavou a bundinha do seu bebê, bem perto das comidas,
tem a velhinha que todos os dias almoça, escova os dentes e fica esperando o
namorado pra pagar a sua despesa, as vezes ela consegue escapar sem acertar a
conta. Eu conheço? Conheço. Mora no meu edifício, mas isso é um segredo que não
revelo.
Pego o ônibus. A adolescente que vem atrás de mim tem uma
mochila nas costas, de onde saem os fios presos no ouvido. O carro inteiro
escuta a música. Enquanto sobe no ônibus, alguém abre sua mochila e ela só
acorda para o mundo, quando o som pára. Adeus celular novo. Ela chora. Tenho
dó. Sou uma galinha cheia de penas. Lá na frente o motorista xinga os
passageiros, o transito, os freios, os motoqueiros, os ciclistas, os pedestres
e o meu sorriso persiste. Resiste até quando dou o sinal e a cordinha
arrebenta. Confesso, querido diário, que nesse momento pensei que o meu
tratamento de beleza ia fracassar. Disparei porta afora e não sei dizer se o
chofer teve um ataque apoplético nem se guardou minha fisionomia para futuros
confrontos.
Bom, meu amigo diário, finalmente chego ao meu destino. Calor
infernal. Pequena multidão irritada na frente das duas atendentes. Tem algo no
ar ou fora do ar. Má notícia. Presenteio a jovem atendente com meu melhor e
mais iluminado sorriso colgate palmolive. Funcionou. Ela me chama, passa meu
dedinho no aparelho e estou liberada. Agora é esperar ser chamada. Procuro uma
cadeira vazia e me acomodo. Abro meu livro e deixo o mundo lá fora. Ou não.
Alguém me dá um cutucão pela direita. Olho. Uma senhora muito
alta e muito magra, cabelos amarelos, roupa amarela, sapatos amarelos, parece
algum espantalho de milharal, solta essa pérola: “ O que você pagou por fora
para ser assim tão bem tratada?” “Nada”
respondo, e volto ao livro. Nova cutucada e o espantalho do milharal insiste:
“Porque você sabe, a propina come solta. Aliás, você sabe o que é propina?” E
tome blá blá. Devo ser muito rica pra “molhar” a mão dos funcionários e ter
tratamento diferenciado, enquanto ela é pobre e blá blá.
Àquela altura, meu tratamento de beleza já estava vencido.
Mas não desanimo, lanço mão do que alguém denominou de “o sadismo involuntário
da indiferença”. Essa tem sido minha perversão número dois. A que escolhi.
Isso, e cavalgar nua no meu corcel branco.
No mais, meu querido diário, “die dulcem habes”, ou, tenha um
bom dia.
Maria Solange Amado Ladeira 01/09/15
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