Corretor digital


Postado em 28/02/2016
PALAVRAS
Solange Amado
Não sei por que, imagino que o corretor do whatsapp seja baixinho, barrigudo, funcionário público, com uma grave neurose obsessiva, com dia certo pra fazer sexo, sem repeteco se tiver êxito. Pior que o marido da d. Flor. Eu odeio ele com todas as fibras do meu ser. Odiar é pouco, às vezes acalento a ideia de assassiná-lo de forma lenta e dolorida, cortando dedinho por dedinho daquela peste.
Desde que o adotei, ou melhor, fui aprisionada por ele, não falo mais gíria, nem palavrão, e até os apelidos de família são cuidadosamente “consertados” e acaba que ninguém entende de quem estou falando. Nem ao menos tenho direito a uma “discordância” verbal ou nominal, que a praga interfere. Não posso ser contra, só a favor.
Acontece que ele não entende que palavra é como marca, traço que bate, fica e vai construindo o que somos. Todo mundo reconheceria Rui Barbosa se ele dissesse: “de pequenas em pequenas partículas farináceas, o bípede emplumado satura o seu esôfago”. Eu, certamente, teria de dizer o popular “de grão em grão a galinha enche o papo”, ou vocês iam pensar que engoli um aristocrata enrustido, daqueles que seguram a xícara de chá levantando o dedo mindinho. Não encaixa lé com cré. E eu detesto chá.
Ontem pedi à minha faxineira pra dar uma limpada na geladeira e me dizer o que tinha ainda no congelador(é lá que eu escondo de mim o que não devo comer). Ela entra no quarto muito solene e enumera: “tem sorvete, pão de queijo, bolo indiano e carambola”. Arregalo os olhos. Carambola pertence à minha infância. Como é que foi parar no meu congelador? “Quem trouxe carambola?” Pergunto. “Você trouxe de viagem. Eu até comi”. Dou tratos à bola até descobrir nos recônditos da memória, que eu trouxe mesmo, mas foi um rocambole pra casa. Ela tem razão. Rocambole e carambola têm um inegável parentesco linguístico. Pra ninguém botar defeito. Parecem um trava línguas tipo “três tigres tristes”.
Leio que numa escola de periferia, a professora pede a um aluno que faça uma frase com a palavra “capacidade”. O aluno não tem dúvidas e sapeca essa: “Quando eu morava na roça, eu era meio abestado, quando vim ca pa cidade, miorei bastante”. Pois é isso. Uma questão de capacidade. E cada um tem uma. As palavras não são adornos que a gente põe e tira como fatiotas que escolhemos  para ocasiões diferentes. Elas nos identificam, fazem parte de nós como uma marca de nascença. Tenho uma amiga, cuja mãe gosta muito da palavra “exclusive”, mesmo que com sentido e pronuncia errados: “conheço muito a fulana, “excrusive” nós fomos colegas, “excrusive” frequentei muito a casa dela”. Sempre achei pitoresco. Muitos anos se passaram e quando a revi há pouco, bem velhinha, o “excrusive” foi o que me trouxe de volta o seu bom humor, a sua juventude de alma, sua simpatia. Essa palavra faz parte dela tanto quanto seus olhos verdes.
Então, imaginem botar um corretor de texto no “excrusive” dela ou na carambola da minha faxineira. Imaginem eu chamando um atleticano de “bípede emplumado”. Não é má ideia, mas não combina nem com o atleticano, nem comigo. Mesmo porque, se você vir o queijo e a goiabada na mesa do pobre, desconfie dos três, do queijo, da goiabada e do pobre.  Eu por mim, além de tudo, continuo desconfiadíssima desse corretor de texto funcionário público. E “excrusive” estou iniciando uma humilde campanha pela a liberdade das palavras. Estou colhendo adesões. Abaixo os corretores!




Maria Solange Amado Ladeira                                                            30/06/15

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