A revolução das minhocas


A revolução das minhocas
Solange Amado
- “Não é por nada não, mas já estou cansada de história de pescador.”
Levei um susto quando ouvi essa declaração em plena pescaria. Nunca tinha reparado que o grau de insatisfação das minhocas tinha chegado a tal ponto. Nosso casamento estava ameaçado.
- “Como assim?” Indaguei, já com o coração aos pulos.
- “Sei lá. É uma vida de extrema monotonia. Não levo nenhuma vantagem, enquanto isso, sr. Anzol, você é extremamente infiel. Cada dia você tem uma minhoca diferente na sua vara, que é insaciável. Um garanhão. Isso é o que você é. Numa só tarde, pode abater quantas minhocas quiser. E nós não temos escolha. É um casamento imposto. Somos anuladas. Já pensou que sem nós, mulheres minhocas, vocês homens anzois não pescariam nem sardinha em lata?”
Para uma reles minhoca, até que esse era um discurso e tanto, e num primeiro momento me desestabilizou. Fiquei meio sem fala com tanta ousadia. Eu não imaginava minhoca como ser pensante. E lá estava ela discutindo a relação. Durma-se com um barulho desses. E a minhoca prosseguiu no seu protesto:
- “Acho que o problema é que somos muito fáceis. Desde que o mundo é mundo, nós nos aceitamos como seres inferiores. Enquanto pensarmos assim, sempre seremos tratadas como se tivéssemos vindas da lama.”
- “Nunca tratei você como um ser inferior. Sempre lhe reservei a parte melhor da minha vara”. Balbuciei. Na verdade, já estava tão irritado, que a coisa que eu mais queria naquele momento, era afogá-la naquele rio e transformá-la em comidinha de algum peixe caridoso. Ah! Se desejos sempre se transformassem em realidade! Infelizmente, nem sempre. E a ladainha continuou:
- “Aliás, pescaria nunca é algo que preste. Sua participação é nula, embora você se ache a estrela do acontecimento. Na verdade, quase sempre aproveitamos pra tomar banho, enquanto os homens bebem e contam mentiras. O peixe vem da peixaria mais próxima, os mosquitos fazem a festa e você fica de bobeira, aliás, de esperteza, porque aproveita para ir trocando as parceiras. Uma minhoquinha daqui outra dali. Sem vergonhice é mato.”  E lá vai ela despejando mais bobagens. Eu já estava com dor de cabeça. Pelo andar da carruagem, o próximo passo daquela conversa mole de infidelidade iria desembocar em terapia de casal. E isso era mais do que eu poderia suportar. Nunca, em toda a sua história, os anzois primaram pela fidelidade. Deveria eu, quebrar essa tradição?
- “ Vocês minhocas bancam as santinhas, mas estão sempre se exibindo rebolativas na frente dos anzois. Como machos, estamos sempre inclinados a ceder diante dessas provocações. Culpa de vocês. A gente só reage.”
- “Pois bem. A partir de hoje vamos acabar com a festa dos anzóis. Nos recusamos a compactuar com essa injustiça. Se um anzol pode ter várias minhocas, a recíproca tem que valer. A minhocada vai à forra.”
Por mais que a ideia seja ridícula, anda me preocupando. Em uma pescaria pode acontecer de tudo. Até nada. Isto é, as minhocas podem resolver, quem sabe, boicotar a operação.
 Pensando bem, resolvi relaxar. No final das contas, a tragédia não é muito grande. Se acontecer, aposto que vai parecer, na verdade, mais uma história de pescador.






Maria Solange Amado Ladeira                                12/05/15


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