Quarta feira de cinzas
É verdade. Acordou e era quarta-feira de cinzas. Seus
neurônios não perceberam de cara, nem que ela já tinha acordado, nem que era
quarta-feira de cinzas. Eles ainda estavam pegando fogo. Seus miolos ainda
dançavam um frevo dentro da cachola, aliás, o mundo à sua volta, dançava um
frevo desfocado. Mas como foi se dando conta muito lentamente, ela ainda estava
viva. Não tinha escolha: era pegar ou largar. Não largou. Foi largada. O
sujeito que ocupara o outro lado da cama se escafedeu na quarta feira de cinzas
e ela nem ficou sabendo seu nome. Tinha uma pintinha charmosa no bumbum
esquerdo, mas isso não resolvia seu problema, de vez que ela nem sabia que cama
era aquela, que quarto era aquele; precisava descobrir que cidade era aquela. E
a única coisa de que dispunha para se vestir era uma fantasia de libélula
desvairada jogada aos pés da cama. Caramba! Uma senhora encrenca!
Aos poucos, as nuvens espessas foram se dissolvendo num
tsunami de incoerência e dor. Lembrou-se: era a primeira vez que visitava
Brasília. Carnaval de tempos muito idos. Um copo duplo de vodka no calor do meio dia, um bloco de machos vestidos de domésticas, pernocas cabeludas à mostra, aventais curtinhos, espanadores nas mãos. E não era culpa sua se aquela doméstica em particular tinha uma boca carnuda e saborosa. E ficou sem saber se era a boca ou a vodka, ou o calor assassino que a fez ser abatida que nem uma lebre desavisada. Não se pode pensar muito bem depois de meio litro de vodka. Um álibi e tanto para ter se enfiado naquela saia justa. Uma libélula desvairada de asinhas e saiote de bailarina e uma doméstica barbuda perdidas num gramado bem perto da Esplanada dos Ministérios, cheias de tesão, bebida e calor, enquanto em volta, reinava aquela “ofegante epidemia” naquela Sodoma dos Três Poderes. Lembrava-se de estar em cima do carro de som, segurando um copo duplo de vodka e gelo, lembrava-se do bigode da doméstica fazendo cócegas no seu rosto. Não se lembrava de mais nada.
Brasília. Carnaval de tempos muito idos. Um copo duplo de vodka no calor do meio dia, um bloco de machos vestidos de domésticas, pernocas cabeludas à mostra, aventais curtinhos, espanadores nas mãos. E não era culpa sua se aquela doméstica em particular tinha uma boca carnuda e saborosa. E ficou sem saber se era a boca ou a vodka, ou o calor assassino que a fez ser abatida que nem uma lebre desavisada. Não se pode pensar muito bem depois de meio litro de vodka. Um álibi e tanto para ter se enfiado naquela saia justa. Uma libélula desvairada de asinhas e saiote de bailarina e uma doméstica barbuda perdidas num gramado bem perto da Esplanada dos Ministérios, cheias de tesão, bebida e calor, enquanto em volta, reinava aquela “ofegante epidemia” naquela Sodoma dos Três Poderes. Lembrava-se de estar em cima do carro de som, segurando um copo duplo de vodka e gelo, lembrava-se do bigode da doméstica fazendo cócegas no seu rosto. Não se lembrava de mais nada.
E na verdade, não tinha muito mais do que se lembrar. O
carnaval é um oásis no deserto das culpas. Culpa requer um passado. É matéria
pro pessoal de meia idade. O jovem acabou de sair do passado e não tem espaço
pra culpa, ressaca moral ou responsabilidade. Jovem é hoje e um espaço grande
de amanhã pra consertar qualquer merda.
E foi isso. Exceto pelo fato de que ela estava ali, num
quarto desconhecido, com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, o sol lascando
lá fora, nenhum tostão no bolso e uma fantasia de libélula desvairada pra
enfrentar um mundo já refeito da loucura carnavalesca.
Respirou fundo e foi em frente. A doméstica teve a decência
de pagar o hotel antes de tirar o time de campo. Porque era um hotel. No meio
do nada. E ela de libélula desvairada num mundo normal de uma quarta-feira de
cinzas normal. Gente passando com fantasias de funcionário público e ela lá com
ridículas asinhas coloridas.
Tempos brabos, sem celular, sem whatsApp ou email. O jeito
foi pegar carona num carro de polícia, aliás, a polícia já estava à sua
procura: polícia, amigos, conhecidos, o bloco inteiro. Difícil foi explicar
esse tresloucado gesto carnavalesco, que de libélula não teve nada, mas teve
bastante de desvairada.
Nossa heroína passou algum tempo em bocas de matildes, mas
consolou-se logo quando ouviu de Oscar Wilde que “as pessoas mais interessantes
são os homens que têm futuro e as mulheres que têm passado”. Ainda bem que tem
carnaval todo ano.
Maria Solange Amado Ladeira
16/02/16
Nenhum comentário:
Postar um comentário