A mesmice criativa


Solange Amado
Andei muito preocupada com o fato de ter de me deleitar num dolce far niente forçado. No princípio tudo são flores –pernas pro ar que ninguém é de ferro, mas depois de 5 dias assistindo a sessões da tarde, e depois de derramar copiosas lágrimas quando um garoto loirinho, órfão e sofredor se despede de seu golfinho preferido pela enésima vez, aí é hora de tomar medidas mais drásticas.
Será que a modorrice, a mesmice, a inanição dos dias vazios não iria passar um ferro quente nas preguinhas das minhas ideias dentro do cérebro? Ou a flor da criação pode brotar no meio do mais árido deserto?
Foi aí que o meu sebo preferido me mandou uma biografia do poeta argentino Jorge Luis Borges. Borges nunca foi dos meu poetas preferidos. Conheço muito pouco dele e da sua arte, mas vá lá, entre Borges e a sessão da tarde, vamos de Borges.
Do pouco que sei dele, dá pra notar que a vida inteira ele viveu às turras com as ditaduras argentinas. Com a desculpa do trocadilho, até Perón evitava a sua pena ferina, assim, me preparei para uma vida recheada de estrepolias, “causos” engraçados e trágicos, como se pode ler em Neruda.
E lá fui eu embarcando nas páginas da minha decepção. Borges viveu uma vida absolutamente insossa. A não ser pela mídia internacional que o assediava e o obrigava a viajar pelo mundo dando palestras e entrevistas, tortura, diga-se de passagem, para a sua natureza tímida e obsessiva, Borges viveu casado com sua mãe. D. Leonor cuidou dele com uma ferocidade de mãe judia. Todos os dias empilhava na cama as roupas que ele ia usar, sempre na mesma ordem, cuecas e meias por cima, e providenciava o prato que ele queria para o almoço. A velha senhora, que morreu com quase cem anos (mesmo tanto do filho), ficou um bocado de tempo naquela conhecida fase do “põe D. Leonor no sol, tira D. Leonor do sol”, mas como diz o biógrafo americano, “era muito teimosa pra morrer”.
Vai daí, que entre os cuidados da mamãe e a rigidez da sua rotina, não havia espaço pra mais nada, nem pro sexo. E não se tem notícia de que lançasse mão de “prestadoras de serviços carnais”. E o homem que escreveu que “viver sem amor, acho impossível” ou “quem contempla desapaixonadamente não contempla”, era um funcionário público em questões amorosas. Até que procurei com afinco uma paixão assim com algumas pitadas sacanas. Em vão.
Minto. Encontrei umazinha: seu único casamento, já no outono da vida, durou pouquíssimo. Absolutamente inábil no trato com mulheres, Borges perigava enlouquecer no seu papel de marido e aí, os amigos entraram em cena. Um dia ele saiu de casa pra trabalhar, vestiu as roupas empilhadas com a cueca por cima, pediu à mulher seu prato preferido para o almoço e se dirigiu ao aeroporto onde amigos o esperavam já com a passagem providenciada. Simples assim. Deu no pé. Horas depois, seus advogados bateram à sua porta com seu pedido de desquite. Nunca mais se viram. Fim.
E se querem saber, taí a resposta às minhas dúvidas. Um homem com um vulcão de ideias dentro de si, com uma vida mais asséptica do que sala de cirurgia. E sabia disso. Afinal, a gente é o que pode ser. “O que dizemos, nem sempre é parecido com o que somos”.
Seja o que for, tô vacinada contra sessões da tarde e contra essa vida de amanuense, que de resto, incomodava até o próprio Borges: “Eu era desses que não ia a lugar nenhum sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda chuva ou paraquedas. Se eu voltasse a viver... viajaria mais leve”.
Minha única dúvida é se ele via sessão da tarde. OK, Isso não é relevante. Foi ele mesmo que disse: “A dúvida é um dos nomes da inteligência”. Sorry.



Maria Solange Amado Ladeira                        24/03/15


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