O edifício onde moro é velho. Ou melhor, velho não é uma palavra politicamente correta, talvez fosse melhor dizer que meu edifício é idoso. Mas idoso não é, pra mim, uma palavra simpática. Vou usar “antigo”. Mas as concessões acabam aqui, já vou avisando.
Podemos recomeçar. O edifício onde moro é antigo. Pródigo em velhinhos, velhinhas e cachorros. Tenho uma vizinha que mora só, com 3 cachorros pequineses. Quase todos os dias, uma mocinha tímida chega para ajuda-la nos afazeres. É o dia de levar os cachorros a passear, com mil lacinhos e fitinhas. Na frente, a velha vai empurrando um carrinho de bebê, com dois dos cachorros, a moça vem atrás, meio constrangida, com outro carrinho de bebê e o terceiro cachorro. A procissão, munida de mamadeiras de água e outros mimos, dá algumas voltas solenes pelo quarteirão e se recolhe. Não sei qual o sentido desse rendez vous. A princípio pensei que essa operação de guerra era para proteger as patinhas dos bichos do asfalto quente. Mas no inverno a operação continua, com o trio devidamente enfatiotado e agasalhado. Coincidência ou não, esses cachorros não latem. Não se sabe se se sentem constrangidos com tanta frescura. O fato é que saem mudos e voltam calados.
Meu edifício antigo é tudo, menos monótono. Não que velhos sejam mais pirados do que jovens. Eu diria que velhinhos chutam o balde com mais frequência. Sabem que o tempo que têm é breve. E não dá pra ficar olhando para os lados e se incomodando com o que esperam deles. Na verdade, velhos já têm salvo- conduto. Todo mundo já espera que eles sejam meio fracos das ideias, que tenham comportamentos esquisitos, e que sejam vacilões. Então é só relaxar . E viver o restinho que lhes cabe.
Dito isso, chegamos à D. Genoveva. Nossa heroína já era uma mulher feita e casada quando o edifício foi construído, e ela se mudou para ele com marido e filhos. Hoje, muitos quilômetros rodados, já viúva e com mais de 90 anos, vive sozinha com seu cachorro, cujo, é uma história à parte. Não sei reconhecer a raça do bicho, tem umas patinhas muito curtinhas, que parecem não dar conta de suportar tanto peso. Toda vez que o vejo, penso que aquele animal está prontinho para uma cirurgia bariátrica. Mas d. Genoveva não pensa assim. Todos os dias ela vai almoçar em um restaurante das vizinhanças e volta com uma “quentinha” pro cachorro, e biscoitinhos e salgadinhos são surrupiados das festas direto pro estômago da fera. E nessa toada o bicho vai crescendo para os lados e o corpo vai escondendo as perninhas minúsculas. E lá vai D. Genoveva com o cachorrinho na coleira. Não se sabe quem puxa quem.
Dia desses, ao ver D. Genoveva e seu cachorro prestes a atravessar a rua, resolvi bancar a boa samaritana. Agarrei o braço dela, começamos a vencer o percurso respeitando a marcha pachorrenta do cachorro que se arrastava atrás de nós. No meio da rua, o diabo do cachorro empacou. Paramos. Olhei para trás e vi o rastro marrom vindo lá da calçada. O bicho sofria um piriri brabo. E aí o sinal abriu para os carros. E nós lá parados no meio da rua, esperando o coitado se aliviar. As motos começaram a costurar por entre os carros e passavam zunindo, e o buzinaço começou feroz , uma fileira de carros se formou atrás de nós, rugindo ameaçadoramente, motores e palavrões os mais variados. Entrei em pânico e gritei: “pegue esse cachorro e vamos pra calçada!” Calmamente ela me disse: “Coitadinho, ele está com dor de barriga!” E aí fez uma coisa inesperada, plantou-se na frente do bicho e abriu os braços. Uma cena inusitada: uma frágil velhinha, um cachorro cagão, um fileira de carros com motoristas furiosos, frente a frente, numa queda de braços impossível. Algo me disse que aquilo ainda ia acabar mal. Confesso que aí, eu me acovardei; abandonei o navio e corri vergonhosamente para a calçada. De lá, alguns espectadores horrorizados acompanhavam a cena dantesca e quase arrancavam os cabelos.
Felizmente, para alívio de motoristas e transeuntes, depois de obrar, o cachorro reiniciou sua caminhada sem tomar conhecimento da comoção em volta. Pra falar a verdade, nunca me notabilizei pela coragem, mas me consolo em pensar que seria uma tremenda besteira arriscar minha vida por um cachorro gordo com intestino desarranjado, em uma das esquinas mais movimentadas da cidade. Espero que me dêem razão, porque depois do episódio, minha reputação com d. Genoveva, está pior do que pau de galinheiro. Fazer o quê?
10/11/15 Maria Solange Amado Ladeira
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