Meu amigo me presenteia com um colar marroquino. Contas
enormes e coloridas.Vou parecer uma drag queen, mas tudo por uma boa amizade. E
pra falar a verdade, a essa altura do campeonato, a aparência é o que menos
conta. Coloco o colar, um sorriso na cara e vamos ao teatro. Ele fica muito
feliz porque eu gostei do colar. Era esse o objetivo. Tudo sob controle, menos
por um detalhe: o colar tilinta a cada passo que eu dou, como se eu tivesse um
sininho amarrado no pescoço. A vantagem é que deixei de ser uma drag queen pra
ser uma vaquinha pastando. Adentro o Palácio das Artes, ele na frente, eu atrás
com passos pesados, tilintando, puxada por uma corda imaginária. Vexame
completo. Depois dessa, penduro o colar num gancho pra bijouterias no meu
corredor: Requiescat in pacem.
Anos se passam. É domingo. Cinco e meia da manhã. Plaft!
Acordo assustada com o barulho. Alguém dentro de casa! O dia vai amanhecendo
preguiçoso. Encho-me de coragem e vou me encontrar com Jack, o Estripador. E
eis que me deparo com o colar esborrachado pelo chão, continhas espalhadas pela
casa toda. Alívio! Agora posso dar uma nova forma ao artefato, tirando o
sininho fatídico, mas primeiro tenho de catar continha por continha pelo chão.
Fico pensando se tal não é o ato de escrever. As palavras são
assim as contas do colar. Às vezes a gente junta tudo e sai um cordão meio
troncho, desajeitado e não sabemos o que fazer com ele. Um texto drag queen ou
vaquinha no pasto. Juntas, as continhas podem formar um mimo, um desastre,
ou uma tragédia: um corpo em decúbito
dorsal no meio da folha. Mas se forem separadas, um dia, quem sabe, vão dar
caldo. O problema é saber que dia é esse.
Tenho palavras delicadas e melosas para um dia em que estou
me sentindo feminil, palavras tediosas para um domingo à tarde, palavras
molhadas para um dia chuvoso, palavras quentes para um dia sexy, palavras
preguiçosas para um dia morno. Praticamente é um estoque gigantesco. O problema
é o colar. O colar de palavras. O arranjo pode não dialogar comigo. E o bom da
coisa toda é me sentir num piquenique, passeando e rolando na grama com as
palavras. Vou tentar. Deve ser fácil.
Dia seguinte: acordo sem barulho e sem Jack, o Estripador.
Urge usar os ingredientes-palavras para fazer o bolo-texto. Com o pó Royal da
inspiração. Olho para fora. Sou toda animação: Bom dia, sol! Bom dia vida! Bom
dia inspiração!... Silencio. Ei! Inspiração!? Acorda! Ei! Acho que ela teve uma
crise de catalepsia. Sem pó Royal o bolo não cresce. Bolo solado. Texto mirrado. Deu zebra.
E já que a vaca foi pro brejo mesmo, com sininho e tudo, a
gente pode deitar e rolar, não na grama, mas na folha. Não tenho compromissos.
O céu me desobrigou. Prometeu chover e não choveu. Esfriar? Só o entusiasmo. O
calor derreteu as calotas polares dos meus neurônios e eles invadiram as
margens, levando de roldão as palavras adequadas. Pois dane-se a adequação. Tem
um jacaré na minha sala. Ninguém acha adequado, mas ele nunca me comeu. E até
produziu um jacarezinho. Geração espontânea. Afinal, tudo pode acontecer. Até
geração espontânea de jacaré numa floresta de palavras. You Tarzan, me
Jane. Vou agarrar no cipó e fugir com a
macaca Chita, mesmo que vocês me aconselhem o contrário, amigos da onça que
são. Acham que devo permanecer na folha, mas já perdi o rumo de casa. Aliás, já
disse: não tem pó Royal. Se querem comer bolo solado. It´s up to you. Eu não tô
nem aí. Minha cota de transpiração já ultrapassou 90%. E continuo no mesmo
lugar. Inspiração que é bom, néca. Desculpem-me, mas hoje vai de piração mesmo.
Maria Solange Amado Ladeira 06/10/15
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