Ia se chegando de mansinho, assuntando, espiando cautelosa,
nem não ousando mais soltar o ar do peito, que batia em desconsonancia com
aquela toada, uma disconcordância que não dava mais jeito de segurar nos
confins das entranhas, de modo a, como intencionava, não apagar a luz do dia
com o escuro que espiava sorrateiro nas entranhas, com um mal intencionamento
descarado de desfeitear o sol rebrilhante da tarde e enfeiar a melodia que a
patroa espalhava no ar, pra fora do piano, e pra dentro dos seus quereres e lhe
dava um desconforto bom, machucando e lambendo lá no meio da prosa dos seus
pensamentos.
Magrinha, apagada, sempre enfiada pelos cantos, parecia mais
um tordo assustado, cheia de refugos e vergonhas no trato com o outro. Aprendeu
cedo a desconfiança, a vida lhe ensinou que o que se tem do outro é barro mole,
periga afundar no primeiro trote. Mas se a vida não dá certezas, convém
responder com um passo de cada vez, que galope é capaz de judiar da gente num
tombo de ribanceira abaixo. E não foi com ela tal e qual? Foi assim com o
Chico. Chico da prosa boa, Chico de olhar pidão, Chico de voz macia, que na
toada de uma viola, desembestou seu coração num galope de fazer gosto, Chico
que só deu desgosto. Fez um filho e foi cantar noutra freguesia.
Agora, a patroa, numa toada, trazia um tempo escondido lá nas
dobras do seu coração sertanejo, nas dobras do sertão ressecado, que de água só
via a dos seus olhos, quando amaciava o chão da sua saudade.
E assim, no sorrateiro pé ante pé do seu atrás da porta é que
o segredo que habitava aquela mulher de palavras parcas e poucos agrados, que
era nossa empregada Margarida se me mostrou. No sopé da vida, desfolhava seu
destino, transformava sua sina, como todas as Margaridas, Marias e Antonias que
forjam, num indo e vindo, seu sentido no mundo. Era minha mãe, toda tarde se
aboletar na banqueta do piano, e lá vinha ela, atraída como abelha pelo mel,
que escorria daquelas notas. E que nem baratas alvoroçadas, as emoções saiam
pelo chão gretado do seu coração sertanejo, num estouro desembestado de boiada
aparecendo no molhado do rosto. Nem atinava com as panelas no fogo, o ferro
queimando o pano das suas recordações. E no que sentia a minha presença num
açodamento de perguntas não respondidas, dizia num qual o que de sem graceza e
um fio de voz: “Só tô esperando aquela toada, o “Destino disfoiô”. E toda
tarde, minha mãe desfolhava o destino daquela Margarida de pétalas úmidas, que
atrás da porta ensinava que “de sofrer e amar, a gente não se desafaz”.
Ma. Solange Amado Ladeira – 21/08/12

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