A pós-modernidade


Maria Solange Amado Ladeira
Ela entrou no meu consultório vestida para matar, sentou-se sem ser convidada num à vontade de fazer gosto. Bonita, elegante, artista plástica com alguns trabalhos já bem conhecidos, apreciou os quadros na parede, falou sobre o tempo, o transito, a dificuldade de estacionar, e continuou no mesmo diapasão, no que eu chamo de comer pelas beiradinhas, evitando cuidadosamente o tema central, ou o motivo de estar ali. Foi quando se esgotaram as preliminares e seu desconforto foi ficando visível que começou a relatar o caos familiar que ela não conseguia administrar: um marido e um filho drogadictos,  ela mesma ex drogadicta, só recuperada por meio de sua intensa ligação com uma igreja evangélica; falou principalmente do seu enorme sentimento de culpa, por ter, no seu entender, deixado a família chegar àquele ponto de desagregação. A narrativa era monocórdia, numa tentativa franca de manter as emoções sob controle. De repente, ela se levantou, jogou os braços para cima, fechou os olhos e como num transe hipnótico, passou a repetir com fervor:  “Mas a mulher sábia edifica o lar”. Reconheço essa frase. É tirada da Bíblia e adorna um pano de prato de minha casa. Mas estava tão deslocada naquele contexto, que imediatamente pensei num delírio religioso. Esperei. Esta cena se repetiu nas sessões que se seguiram. Fiquei sabendo que ao procurar o pastor da sua igreja para falar da sua impotência diante da situação familiar, ele jogava a peteca de volta com essa frase, o que só aumentava seu sentimento de culpa.
Um dia, resolvi interromper esse mantra e perguntei: “O que é uma mulher sábia?” Ela titubeou, tropeçou e gaguejando, respondeu: “Ora, a mulher sábia é a que sabe!” Continuei sem dar refresco: “sabe o que?” Novo tropeço e a resposta: “Bom...ora bolas, sabe tudo!” E com um largo sorriso acrescentou: “Quer dizer, ninguém sabe tudo, né?” E aí entrou água nessa certeza bíblica. Fez-se o furo e a cantilena acabou. Ninguém sabe tudo. Não posso tudo. Não há completude. Há  limite.
Me lembro sempre dessa história quando me vejo diante desse sujeito chamado pós moderno, tão alienadinho no discurso do outro, que se recusa a enxergar o limite, o furo. Pra que se interrogar sobre seus sintomas, sobre o seu mal estar, se a neurociência já facilita tudo com cifras (dda, toc, tdah, etc.)? A gente tem a cifra certa, o diagnóstico certo, a pílula certa. Vou me angustiar pra que, se tem anestesia?  Pra que me interrogar sobre meu funcionamento no mundo? É só seguir o plim plim da Globo e a gente fica feliz para sempre.
E é aí que entra essa coisa de criar. Diante da folha em branco, me ponho a pensar, essa coisa bem antiga. Quero criar algo, mas pra criar tenho de pisar terreno desconhecido e espinhoso;  sei que o excluído, o estranho, o fora da moda, o marginal é, em geral, o que torna possível pensar o que já está conceituado, aliás, a pós modernidade exige originalidade, mas não permite a criação da individualidade. Quer criatividade uniformizando essa tropa de burros que somos nós. E não há criação sem incômodo. Isso exige sair da zona de conforto e exercitar a reflexão, um caminho pedregoso. E nessa manhã chuvosa, o que eu quero mesmo é obturar esse mal estar, é me livrar desse algo me cutucando, é me enrodilhar bem quietinha debaixo do cobertor da alienação. É isso, vou jogar a toalha.
Afinal, sou uma mulher sábia. Certeza. Fim. Estou me sentindo o máximo. Ainda bem, porque a folha já está acabando. Pra escrever algo original tenho de renunciar à completude, mergulhar na dúvida e interrogar os dogmas. Não dá. No momento estou ocupada edificando o meu lar. Talvez amanhã.

Maria Solange Amado Ladeira –4/06/13


Nenhum comentário:

Postar um comentário