Ela entrou no meu consultório vestida para matar, sentou-se
sem ser convidada num à vontade de fazer gosto. Bonita, elegante, artista
plástica com alguns trabalhos já bem conhecidos, apreciou os quadros na parede,
falou sobre o tempo, o transito, a dificuldade de estacionar, e continuou no
mesmo diapasão, no que eu chamo de comer pelas beiradinhas, evitando
cuidadosamente o tema central, ou o motivo de estar ali. Foi quando se
esgotaram as preliminares e seu desconforto foi ficando visível que começou a
relatar o caos familiar que ela não conseguia administrar: um marido e um filho
drogadictos, ela mesma ex drogadicta, só
recuperada por meio de sua intensa ligação com uma igreja evangélica; falou
principalmente do seu enorme sentimento de culpa, por ter, no seu entender,
deixado a família chegar àquele ponto de desagregação. A narrativa era
monocórdia, numa tentativa franca de manter as emoções sob controle. De
repente, ela se levantou, jogou os braços para cima, fechou os olhos e como num
transe hipnótico, passou a repetir com fervor:
“Mas a mulher sábia edifica o lar”. Reconheço essa frase. É tirada da
Bíblia e adorna um pano de prato de minha casa. Mas estava tão deslocada
naquele contexto, que imediatamente pensei num delírio religioso. Esperei. Esta
cena se repetiu nas sessões que se seguiram. Fiquei sabendo que ao procurar o
pastor da sua igreja para falar da sua impotência diante da situação familiar,
ele jogava a peteca de volta com essa frase, o que só aumentava seu sentimento
de culpa.
Um dia, resolvi interromper esse mantra e perguntei: “O que é
uma mulher sábia?” Ela titubeou, tropeçou e gaguejando, respondeu: “Ora, a
mulher sábia é a que sabe!” Continuei sem dar refresco: “sabe o que?” Novo
tropeço e a resposta: “Bom...ora bolas, sabe tudo!” E com um largo sorriso
acrescentou: “Quer dizer, ninguém sabe tudo, né?” E aí entrou água nessa
certeza bíblica. Fez-se o furo e a cantilena acabou. Ninguém sabe tudo. Não
posso tudo. Não há completude. Há
limite.
Me lembro sempre dessa história quando me vejo diante desse
sujeito chamado pós moderno, tão alienadinho no discurso do outro, que se
recusa a enxergar o limite, o furo. Pra que se interrogar sobre seus sintomas,
sobre o seu mal estar, se a neurociência já facilita tudo com cifras (dda, toc,
tdah, etc.)? A gente tem a cifra certa, o diagnóstico certo, a pílula certa.
Vou me angustiar pra que, se tem anestesia?
Pra que me interrogar sobre meu funcionamento no mundo? É só seguir o
plim plim da Globo e a gente fica feliz para sempre.
E é aí que entra essa coisa de criar. Diante da folha em
branco, me ponho a pensar, essa coisa bem antiga. Quero criar algo, mas pra
criar tenho de pisar terreno desconhecido e espinhoso; sei que o excluído, o estranho, o fora da moda,
o marginal é, em geral, o que torna possível pensar o que já está conceituado,
aliás, a pós modernidade exige originalidade, mas não permite a criação da
individualidade. Quer criatividade uniformizando essa tropa de burros que somos
nós. E não há criação sem incômodo. Isso exige sair da zona de conforto e
exercitar a reflexão, um caminho pedregoso. E nessa manhã chuvosa, o que eu
quero mesmo é obturar esse mal estar, é me livrar desse algo me cutucando, é me
enrodilhar bem quietinha debaixo do cobertor da alienação. É isso, vou jogar a
toalha.
Afinal, sou uma mulher sábia. Certeza. Fim. Estou me sentindo
o máximo. Ainda bem, porque a folha já está acabando. Pra escrever algo
original tenho de renunciar à completude, mergulhar na dúvida e interrogar os
dogmas. Não dá. No momento estou ocupada edificando o meu lar. Talvez amanhã.
Maria Solange Amado Ladeira –4/06/13
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