Então, vamos esclarecer logo de saída: eu não tive intenção.
Nem boa, nem má. Pelo menos, de início. No início foi só o verbo. Só muito
recentemente comecei a refletir sobre o fato de que, de boas intenções o
inferno está cheio. E como não tenho planos de, pelo menos por agora, me
queimar no fogo do inferno, atualmente, tenho o maior cuidado de só ter más
intenções. Minha filosofia é mais ou menos a daquela famosa atriz, acho que Mae
West, que dizia: “quando sou boa, sou ótima, mas quando sou má, sou melhor
ainda”. Foi assim que eu a matei.
Em geral, sou inofensiva. Nunca roubei nenhum pirulito de
criancinha. E até ajudo as velhinhas a atravessar a rua, tirante se elas são
menos velhinhas do que eu. Cumprimento as pessoas no elevador, e abro o meu melhor
sorriso, até para os mais carrancudos. Em ocasiões esporádicas, quando chove na
minha horta e a lua está cheia, eu até faço um bilu bilu num cachorrinho de
madame. Tudo isso faz parte do falso self que a gente carrega como um colete à
prova de balas. É pesado e incômodo, mas evita maiores inconvenientes.
É claro, tenho um número razoável de esquisitices,
comportamentos perversos e porraloquices. Mas no geral, eu vivo à margem, que
não sou doida de embarcar nessa canoa furada da normalidade intelectual. Por
mais bizarra que eu seja, não consigo me encaixar no modelito manicômio que a
passarela do mundo me mostra.
As pessoas hoje se matam e morrem sem nenhum sentido. Eu, ao
contrário, matei na maior coerência. Não foi uma coisa gratuita, assim um lance
de non sense. Teve um roteiro e até trilha sonora.
Tudo começou quando o casal se mudou para o apartamento em
frente ao meu. Eu a vi primeiro, a mulher. Magra, alta, risonha e jovem,
beirando a casa dos 40. Aquele entusiasmo juvenil me passou uma ziguizira ruim.
Juventude sorridente é um pleonasmo e uma covardia para os mais maduros. Fiquei
com vontade de procurar algum defeito: pé grande ou bunda quadrada. Pelo menos
isso, até achar alguma coisa mais consistente, que, quando a inveja e o
despeito batem, convém existir pra justificar a antipatia grátis pelos mais bem
dotados.
Vai daí que, em uma bela noite, a campainha tocou. Abri a porta.
Na minha frente, um homem; um exemplar da melhor safra produzida por um DNA
privilegiado. Era o marido. Bem mais velho dos que os 40 anos presumidos da
garota, sua mulher. Eu diria que pendia mais pra meia idade. Mas se na meia
idade já era aquele monumento, por mim, nem precisava chegar à idade inteira.
Retive o folego.
Ele se apresentou. Soube pela mulher que eu havia rompido os
ligamentos do tornozelo. Era médico ortopedista. Veio oferecer seus préstimos.
Acrescentou que me ouvia tocar e cantar ocasionalmente. Era louco por música.
Poderia partilhar comigo alguns desses momentos?
Convidei-o a entrar. E ele não se fez de rogado. Entrou de
sandália, bermuda e camiseta na minha casa, no meu pensamento, no meu coração,
na minha música e ficou por aí. Parou antes de entrar na minha cama, que esse é
um desejo só meu. A bem da verdade, é um péssimo atacante. Mesmo cara a cara
com o gol, chuta pra fora, desafina nas notas finais. Não acerta nem no ré
médio. Aí pensei: só pode ser o freio de mão do pé grande.
Não deu outra, um belo dia, toquei a campainha do apartamento
da frente, bem cedo de manhã. Ela atendeu. Mirei bem no meio dos olhos e
atirei.
Bom, a bem da verdade, eu a matei inúmeras vezes. Ela ainda
não morreu. Mas continuo tentando. Toda manhã, miro bem no meio dos olhos dela
e atiro. Minha pontaria vai aos poucos melhorando. Minhas intenções, ao
contrário, são cada vez piores. Um dia eu chego lá.
Maria Solange Amado Ladeira 08/09/2015
www.versiprosear.blogspot.com.br
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