Ele se chamava John Donne, era inglês, era poeta e nasceu em
1572. Muito, muito antes de você nascer, mas vocês possuem algo em comum: o
mundo virou as costas aos dois. Fez ouvidos moucos a palavras que não era
interessante ouvir. E continua a fechar os olhos a imagens que incomodam. Mas
quinhentos anos depois, as palavras e as imagens persistem, insistem. Não se
calam. Estão aí e não se calam. Basta ler John Donne: “nenhum homem é uma ilha
isolado em si mesmo, todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra
firme”.
Eu o vejo. Os minúsculos pezinhos tentando se equilibrar nos
primeiros passos. Posso ver o sorriso radiante de poder olhar o mundo de pé. A
sensação de euforia no seu rostinho. As primeiras palavras. E com elas, as
primeiras frases necessárias para se comunicar com o mundo à sua volta. Tantas
perspectivas! Eu o vejo assim, peito aberto, braços abertos na ânsia de se
entregar ao futuro. E o futuro era os seus semelhantes. Nenhum homem é uma ilha
isolado em si mesmo. Você ansiava pelo outro, confiava no outro, estendia os
braços para o outro e se entregava numa confiança cega. O outro. Terra
inexplorada para a qual se dirigia com a ansiedade da inocência. Sorriso nos
lábios.
E Donne, dir-se-ia um visionário, continua: “se um torrão de
terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída como se fosse um
promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio”.
E é assim, levado pelo mar que eu o vejo. O mar pousou você
numa praia deserta da Turquia. Seu rostinho enterrado na areia, como se bebesse
a água do mar. A terra firme lhe foi negada e o mar não o acolheu. Seus
pezinhos minúsculos tiveram abortada a sua caminhada. Você abriu os braços para
o mundo, mas o mundo virou as costas. Seu sorriso se perdeu naquela praia da
Turquia.
Aylan Kurdi não caminha mais. Não sorri, não estende os
braços para o mundo. Sua voz emudeceu. Porque Aylan Kurdi está morto. E levou
consigo parte de mim. De todos nós.
E é John Donne que diz: “a morte de qualquer homem me
diminui, porque sou parte do gênero humano”. Gênero desumano que anda matando
tantos Aylans pelo mundo. Onde está a humanidade de quem cospe na cara de uma criança de 3
anos, fechando suas portas a um futuro?
Foi o que fizemos, nós, os desumanos. E não temos desculpas.
Talvez tenhamos umas dez culpas. Fechamos os olhos, enterramos a cara na areia
como a foto que nos agride no jornal ou na TV. Quantos Aylans terão que ser
achados em praias desertas e frias pelo mundo para que a humanidade finalmente
nos toque?
Aylan se foi. A terra finalmente o recebeu na sua pequena
cidade em ruínas. Mas enquanto os sinos tocam ritmicamente acompanhando a
descida do seu corpinho ao túmulo, nós ainda temos que nos haver com nossa
surdez, a nossa cegueira, a nossa desumanidade.
E quem sabe, no momento em que os sinos soam acompanhando
Aylan até sua última morada, possamos entender o que John Donne queria dizer:
“não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Maria Solange Amado Ladeira 15/09/15
www.versiprosear.blogspot.com.br
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