De celulares, amores e gozos

Solange Amado Ladeira
DE CELULARES, AMORES e GOZOS
Todo mundo sabe que amor é algo meio ridículo. É só botar reparo nos arrulhos  de um par apaixonado. Que o diga minha tia, que chegou bem perto dos 100 anos. E ainda muito jovem, resolveu se encerrar num convento. Foi ser freira.
Quando ainda muito jovem, seu quarto tinha janela alta dando para a rua. Todas as noites, um casalzinho vinha namorar debaixo da sua janela. Tempos brabos em que o máximo que uma donzela pudica podia ousar era um beijo furtivo, mãozinhas entrelaçadas quando longe dos adultos, no mais, era o coração palpitante e as pernas bambas pela ousadia de estarem a sós sem o monitoramento incansável das famílias, zelosas da honra da garota.
Toda noite era a mesma toada. Minha tia tentando conciliar o sono, e o casalzinho arrulhando embaixo da janela. O cavalheiro tentava bravamente roubar um beijo da donzela, ou uma tímida apalpadela. A dama resistia, o cavaleiro insistia. E esse vai não vai ia pela noite adentro: “ Só um beijinho”... “Não”...”Só na orelhinha”... Ah! Não!”...”Deixa”... “Tira a mão"...Não me admira que minha tia tenha preferido o convento. Pelo menos lá, ela dormia sem esse tatibitate amoroso debaixo da janela.
E se jovens apaixonados arrulham. Imaginem se aos arrulhos se soma aquele aparelhinho viciante chamado celular. Aí dá para se encerrar num mosteiro tibetano.
Ainda outro dia, peguei um ônibus e me acomodei ao lado de um adolescente com esse indefectível aparelhinho nos ouvidos. O trajeto era curto. Enquanto o ônibus se movia rápido, a conversa ao meu lado não saia do lugar: “Anda, desliga, meu bem”...”Não, meu amor, eu não vou desligar. Da última vez você disse que eu desliguei na sua cara”... “Desliga, docinho”... Não. Não vou”... A trilha sonora podia ser o bolero de Ravel.
A essa altura, eu é que tentava inutilmente me desligar. Meus instintos assassinos afloravam rapidamente. Felizmente, antes que eu pulasse no pescoço do gajo, chegou minha vez de descer. E fiquei sem saber quem ganhou aquela queda de braços.
Uma semana depois, entro num ônibus, havia uma vaga ao lado de um rapazinho. Um sinal vermelho se acende em mim. Por precaução, sento-me ao lado de uma senhora. Mais seguro. Logo, o celular dela toca. E o drama começa aos berros: “O que? Ele tornou a te bater? Chamou a polícia?”... “Ah! A polícia já chegou? Levou ele preso?”... “Meu Deus! Você retirou a queixa de novo?”... “Eu avisei que você ia se acostumar. Você não passa de uma sem vergonha! Trancou a porta? Ele entrou pela janela?... Péra aí, deixa eu falar com o polícia”... “ô seu guarda. Isso não presta nem pra jogar fora, mas minha filha gosta dele...Lei Maria da Penha nele”... “Eu sei, seu guarda, mas com queixa ou sem queixa, ele precisa ir para a cadeia... Chama ela de novo!”... Do lado, eu tentava fazer cara de paisagem e manter minha fleuma britânica. Difícil quando um barraco se desenrola ao nosso lado. Felizmente, o ônibus parou no meu ponto e dei o fora rapidamente sem saber se ia ou não dar lei Maria da Penha.
Mas se acham que me livrei desse maldito celular, podem se sentar que em pé se cansam. Ontem, tornei a pegar um ônibus. Transito das 6 horas, trajeto longo. O ônibus parecia um dromedário cansado. Ia se arrastando. Não tinha muita gente e me sentei-me ao lado do trocador. Ali estaria protegida. Abri meu livro. O celular dele tocou: “ Oi. E aí, cara!”... “Calma, cara, está nervoso. Por que?”... “Não, véi, ela é que me beijou. Eu não beijei ela”... “calma, cara, a gente é amigão, cara. Né nada que cê tá pensando”... “Deixa eu te contar. A gente tinha bebido de montão. Eu tava chapadão e ela tava malucona. Aí ela me chamou para cama. Aí eu fui”... “Não. Calma! Deixa eu acabar. Ela me chamou. Eu fui. Aí, cara, ela pegou a dormir. Eu falei: como assim?”... “Não véi, não teve nada, só pegação. Ela dormiu, cara!”... “Foi só pegação, mais nada. E eu nem sabia que você era assim tão afinzão dela”... “Se eu soubesse”... “Ô cara, vamos “tomar umas” na quinta. A gente é amigo pra caralho”... E aí, o ônibus chegou ao meu ponto e eu desci sem saber  como é que acabou a história do chapadão e da malucona. O amigo corno aceitou “tomar umas” na quinta?
O que me irrita nesses pedaços de conversas amealhados nos ônibus e nas calçadas é que elas funcionam assim como um “coitus interruptus”. No melhor da festa, a gente é deixada assim no vazio, esquecida que nem abóbora da janta.
Vocês imaginam que hoje, na hora do almoço, a jovem da mesa ao lado, aparelhim no ouvido, mandava essa: “Olhe, se você disser que lhe contei isso, eu nego até morrer. Mas você sabia que o namorado dela é gay?”Ato contínuo, levantou-se e saiu.
Como é que eu vou poder dormir à noite, levando essa vida  de coelho,vai ser bom não foi?
É isso aí. A ordem hoje em dia é ficar só nas preliminares. Recolher o tesão, abortar o movimento, que o celular só permite cutucar, o resto a gente tem de recolher.
Então, curiosidade recolhida, só me resta fazer o que fez a malucona na cama com o chapadão: dormir. Ou ficar na pegação. O que será?
Ato contínuo, sinto dizer que vocês vão ter de ficar só na imaginação. Tô descendo do ônibus.


Maria Solange Amado Ladeira          s    22/09/15

















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