Esquisitices da Vida Cotidiana



Solange Amado Ladeira
Manhã ensolarada. Saio do banho, junto a minha roupa espalhada pelo banheiro, atravesso a casa, abro a tampa da lata de lixo e despejo tudo ali. Foi só um branco, dou meia volta, pego de novo a roupa e boto no cesto de roupa suja. Melhor não dar importância a esses pequenos lapsos que têm me ocorrido. Pra todos os efeitos, Freud explica esse gesto, consolo a mim mesma. Vai ver, ando cansada de mim ou das minhas roupas. Volto ao banheiro, procuro os meus óculos. Cadê? Ando pela casa removendo almofadas, enfeites, abro gavetas e armários e nada. Abro a geladeira e procuro entre frutas e legumes, mas não dou sorte. Às vezes eu o encontro em locais nunca dantes navegados, mas desta vez estava pendurado no meu pescoço. Ando mesmo muito distraída. Nada preocupante.
O telefone toca, pego o controle da televisão e atendo.  Semana passada fui almoçar em um restaurante, mas esqueci a carteira no carrinho de Supermercado, além de botar sal no meu toddy. É, eu gosto de toddy e ninguém tem nada com isso, tirante a minha endocrinologista. Ela acha que toddy é um alimento muito infantil, e cheio de calorias, devo substituir por alpiste, três vezes ao dia. Faz parte de sua campanha para que eu emagreça e seja infeliz para  sempre.
Melhor esquecer as preocupações e tomar um café quentinho, lembrem-se, toddy é pra criança. Boto a água pra ferver e vou para o computador compor um texto, ou pelo menos tentar, afinal, como diz um amigo meu, escrever à mão pertence à era paleológica. Duas horas depois, descubro que não tenho nada contra a era paleológica e que a água secou. E vou procurar uma caneta e o endereço de um geriatra.
Marquei a consulta com urgência, às 8 da manhã, afinal, resolvo que esses são sintomas sérios de demência senil. Todo cuidado é pouco. É verdade que nunca me notabilizei pela capacidade de concentrar a atenção e o meu feito mais famoso no que tange a esse capítulo foi durante um enterro, ao cumprimentar os parentes do morto, apresentei compungida as minhas... congratulações, arrematando com um sonoro  “meus parabéns!” É verdade que o velório mais parecia um piquenique, todo mundo comendo e bebendo, mesmo assim, meus amigos não me perdoam, de vez que a saia justa respingou neles. Fazer o que?
Mas e o geriatra? Vai bem obrigado. Tivemos uma breve conversa, levei uma meia hora botando reparo nas suas reações e nas suas queixas e conclui que seu nível de stress estava tão alto que não valia a pena acrescentar mais mazelas ao seu cotidiano. Esqueceu de me dar a receita e esqueci de solicitar.
Naquele dia resolvo que, se é pra combater o stress é mais negócio assistir a um show do Quarteto em Cy, que ainda bate um bolão, sem nenhuma demência, espero. Pego o elevador, e no décimo andar entra minha vizinha, uma morena jovem, bonita e elegante, perfume e saltos altíssimos, nós nos cumprimentamos e no mesmo instante percebo que qualquer coisa está errada. Nossa amiga elegantérrima traz, pendurado no braço, um saco de lixo, o plástico é transparente e vejo restos de comida e cascas de banana. Devo dizer que isso pra mim, não é exatamente uma surpresa: quando fiz um estágio de um ano no Hospital Raul Soares, me acostumei com a cena de inúmeros pacientes com seus camisolões disformes, passeando com uma sacolinha na mão, cujo conteúdo variava, pedaços de barbante, pau de picolé, carretéis vazios, etc. Eles jamais abandonavam seus embrulhinhos. Era a sua defesa contra a despersonalização que a instituição lhes impunha. Mas, confesso que era a primeira vez que eu via alguém sair pra balada, com restos de comida e cascas de banana à guisa de bolsa. Como em boca calada não entra mosquito, surto psicótico ou não, resolvi manter o silêncio. Foi quando o elevador alcançou o térreo que ela olhou pra o próprio braço e deu um berro: “Meu Deus, minha bolsa!”
Fiquei curiosa pra saber se conseguiram resgatar a sua bolsa e , o mais importante e causa do seu maior desespero, se seu celular resistiu à queda de 10 andares. Fiquei compadecida. Sem celular, o  jovem perde uns 90% da sua potencia.
Garanto pra vocês que não sou perversa. Não desejo mal pra amigos e inimigos, mas saí desse incidente com alma lavada.
Demência senil ou demência juvenil? A coisa anda tão esquisita que todo mundo periga confundir cantor de programa com canteiro de por  grama.
Cadê meus óculos?


Maria Solange Amado Ladeira -  23/03/13   

Um comentário:

  1. Maria Solange,
    Sou amiga do Sebastião (Tião) e através dele ,que me passou o seu blog, tenho lido suas crônicas e amado. Leio-as aos poucos e me delicio com seu senso de humor e com a leveza com que você escreve. Parabéns.
    Ivone

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