A MESMICE
Não importa quantos amores você teve, em quantos países você viveu, quantas ruas percorreu, em quanta canoa furada embarcou. Hay que repetir. Por mais que você corra da mesmice, e fique saltitando que nem pipoca em panela quente pra não cair na monotonia, vai ser inútil. Aqui ou na Conchinchina, você acorda, se espreguiça,  reza três ave marias pra livrar sua alma do fogo do inferno, faz xixi, lava o rosto, escova os dentes, arruma a cama ( condição sine qua non pra começar o dia, ou uma família de pulgas vem de mala e cuia e começa a habitar o seu colchão), toma os remedinhos da manhã, faz o seu café, cumprimenta os seus familiares ou, quando muito, seu cachorro ou seu gatinho (nessa ordem) e vai à luta. Todos os dias. E se isso não é monotonia, minha avó é bicicleta.
Na realidade, vivemos imersos na mesmice.  Acontece que encaramos a rotina como encaramos o dinheiro. Não cheira bem, mas nos acalma. Exatamente como Tom Jobim dizia do fato de morar ao mesmo tempo em Nova Iorque e no Rio de Janeiro: “Nova Iorque é bom, mas é uma merda, o Rio é uma merda, mas é bom”. O dinheiro é bom, mas é uma merda. A rotina é uma merda, mas é boa. Alguma coisa assim.
Seria bom se não fosse ruim, a gente se livrar da rotina. E andar nos trilhos não faz mal pra ninguém, não acaba com o tesão, não tolhe a criatividade e não tem nenhuma contraindicação.
 Quando criança, era meu divertimento preferido. Minha tia morava em frente à estação de trens, e eles faziam manobras o dia inteiro, e a criançada andava nos trilhos e brincava nas composições na maior felicidade, pra desespero das famílias e dos fiscais da estação. Não obstante os possíveis cabelos brancos presenteados aos pais, tios e avós, nunca tivemos um acidente. Sabíamos a hora de saltar fora.  Por mais imersos que estivéssemos contando os passos e nos equilibrando pelos labirintos de trilhos, era lá dentro de  nossa cachola que o trem apitava. É lá que a rotina não pode existir. É lá que estamos prontos pro apito do trem. Pouco importa o que se passa lá fora.
Pouco importa se você repete. Não vai denegrir o seu currículo. Se você continuar pensando, sua canção não vai desafinar.
Até que a gente pode virar a mesmice de ponta cabeça: mudar de parceiro, de filhos, de casa, de amigos, de professores, de cursos, de língua; comprar uma bandeira nova do time rival e trocar de camisa. Se estiver cansado de beijar e  acordar todos os dias ao lado da mesma mulher ou do mesmo homem (quer canseira maior?), pode fugir dessa tortura. Mas já vou avisando, não vai prestar. Faça o seu dever de casa. Descasque o ananás que lhe coube, sem se preocupar em ser diferente a cada passo. O importante não é a maneira de descascar o ananás, mas o que você vai fazer com ele.
OK.  Tudo isso está cheirando a lenga lenga de auto ajuda, mas tenho sentido a maior canseira dessa caça desesperada à baleia da originalidade. Não é preciso pressa. Ela nunca entrará em extinção. Tem uma pra cada um. Alguém já disse que um hobby deixa de ser um hobby, quando você se dedica a ele 24 horas por dia. É isso. A gente deixa de ser original quando quer ser original  in aeternum. É a banalização da originalidade.
Então, vocês sacaram que sou contra a originalidade compulsiva. Estou aqui fazendo apologia da mediocridade, da mesmice, da rotina. Andei nos trilhos na maior felicidade, minha infância inteira.  O trem nunca me atropelou. E foram as maiores viagens que fiz na minha vida.
Não sou normal. Sou normalíssima. E acho que é esse sufixo íssima que me impede de ser sempre igual. E Chico Buarque que me perdoe. Um dia eu beijo com a boca de hortelã, outro, com a boca de café. Tem até o beijo com a boca de feijão. E o que me dizer daquele dia do beijo com a boca de paixão? Quantas promessas! Vai me dizer que de noite, quando a gente se encontrar, não vai rolar um clima olhos nos olhos?
Então, pode relaxar e ser medíocre com a graça de Deus.





Maria Solange Amado Ladeira                           20/10/15

Nenhum comentário:

Postar um comentário