Submissões e virtudes
Solange Amado
A campainha
tocou. Ela se levanta depressa demais e o pé da mesa se enfia no meio do
caminho. O “trupicão” é inevitável. E aí ela desfila o seu estoque de
palavrões, em português, italiano (que seu amigo lhe ensinou outrora), e seu
filho único em francês, (tirante “merde” e “salope”, seu francês é puro que nem
freira de convento). O dedão agradeceu o
apoio, mas sua faxineira não perdoou. Deu-lhe uma bronca.
Quando se sente aborrecida com alguém, como palavrão é um pecado
grave, o máximo que diz é “fulana é uma
benção!” Leia-se “fulana é pura “merde”. Pois aí, com o dedão ainda pulsando de
dor, a patroa ouve que “uma muié na minha Igreja, com a boca muito suja, um dia
chegou no culto, toda quebrada, moída de pancada. E sabe quem foi? O capeta.
Ele deu a maior surra nela! Ela não sabe que foi ele. Mas é claro que foi!”.
A patroa diz que conhece essa história. Acredita piamente.
Tem uma deputada muito conhecida nesse país, que sofreu o mesmo incômodo. Acho
que não diz mais palavrões, pelo menos enquanto não der uma topada no pé da
mesa. Apanhar do capeta é brabo!
Muito bem. Mais uma coisa pra se preocupar. A vida é uma
benção!
Pra se distrair, ela dá uma olhada básica nas suas redes
sociais. Aí sim. Aí é uma beleza. Todo mundo é culto, sábio e dono da verdade.
Seu pai já dizia que nesse país, pretensão e água benta ainda são de graça.
Errou feio. Água benta não existe mais. Se escafedeu com a pandemia. Sobrou, de
graça, a pretensão. Locupletemo-nos pois! Lá é assim: quem não pensar igual a
mim é a mosca do cocô do cavalo do bandido. E o capeta vai lá e crau nele.
“Supremo locuta, causa finita”. O Supremo falou, tá falado. Né? É assim que
funciona.
Não se pode fazer nada. As pessoas são complicadas. Ela por
exemplo, quando resolve exercer seus talentos na cozinha, as coisas ficam bem
enroladas: dá cabeçada na porta do armário, queima o dedo (e a comida
ocasionalmente), bota açúcar no arroz. Uma coisa de cada vez ou todas juntas.
Depende do dia e da sem jeiteza.
Mas ninguém se preocupe. Em “As boas mulheres da China”, a
autora Xinran diz que lá, nos tempos de Mao, rezava um dito popular que numa
mulher, a falta de talento é uma virtude. Assim, ela se sente tranquila, é
cheia de virtudes.
E já que está nessa toada de Mao, quem diria, ele bem que acreditava na virtude,
ou nas virtudes femininas. Sua cartilha dizia que a mulher deve pautar sua vida
por “três submissões e quatro virtudes”. Submissão ao pai, ao marido e ao filho
depois”. E as virtudes: fidelidade, encanto físico, decoro na fala e nos atos e
diligência no trabalho doméstico.
E aí ela foi pro brejo. Falhou feio com Mao. E se não agradou
ao Chefe Supremo, ainda bem que aqui na terrinha ganhou a dica e a simpatia de
um Noel Rosa:
“E as pessoas que eu detesto,
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é
um botequim”
Mao que vá lamber sabão e se insistir nesse negócio de
submissões e virtudes, ela ainda arrisca um famoso gesto com o dedo médio. E
sai da sala. Já deu.
Maria Solange Amado Ladeira 08/09/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
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