O alfarrabista
Solange Amado
Ela comprou o livro no sebo perto de casa. O de sempre. Às
vezes faz trocas. Leva seu carrinho de feira, bota os calhamaços que já leu
dentro e segue de coração leve e alma
primaveril para esse troca-troca. Sempre acha que levou vantagem. A dona do
sebo deve achar o mesmo. Negócio supimpa. Prazer garantido.
Entra, cumprimenta a proprietária, pega um banquinho de
madeira, recolhe alguns livros das estantes, dá uma sapeada no autor, na
apresentação, senta-se (se alguém chega antes e lança mão do seu banquinho, ela
olha feio pro invasor e deixa muito claro que aquilo é propriedade privada. Em
geral ele entende. Se escafede em poucos segundos). E aí ela prossegue lendo
trechinhos dos livros espalhados ao seu redor. Pode ser história, biografias,
suspense e coisas que tais. Dispensa auto-ajuda, ficção científica e narrativas
politicamente corretas.
Pois ontem, pasmem! Ela comprou por 10 reais, novinho em
folha, um exemplar de um dos seus autores preferidos de suspense, John Dunning.
Um verdadeiro achado. Não conseguiu desgrudar.
E o texto que deveria escrever foi pra corda do sino. Além do
mais, o cachorro da vizinha late muito alto e a obra no andar de baixo deu de
usar uma motosserra lazarenta. Não ajuda nada o fato de o otorrino ontem ter
extraído dois quilos de cera dos seus ouvidos. Ficaram apurados. Foi mal. Um
escritor precisa de inspiração e silêncio. No momento ela não tem nenhum dos
dois.
Com esse álibi perfeito, ela dá uma banana pro texto e
retorna sem culpa ao seu achado de dez reais. O detetive tem nome complicado,
Cliff Janeway. Mas o nome não vem ao caso, o caso é que cai no colo do detetive
e do leitor, com uma originalidade surpreendente. A vítima é um catador de
lixo, morador de rua, sujo e amante de gatos, recolhe todos os que estão
famintos pelas ruas. Nosso herói-vítima tem uma particularidade: mal sabe ler,
mas é um alfarrabista de primeira, um faro único para livros raros.
Recolhe livros importantes e refugados
no lixo, detecta fácil uma preciosidade, e vende por muitos dólares.
Recentemente achou “Mr. President”, a história do governo Truman. Exemplar
autografado. Valeu 800 dólares. Já conseguiu até 2.000 dólares. Mas o dinheiro
não é importante. Dá pra alimentar a gataria e outras milongas que ele cismar e
volta rapidinho a ficar na lona.
Pois esse nosso amigo, pacato morador de rua, caçador de
livros raros, é assassinado uma noite qualquer, com uma porretada certeira na
nuca, e fica lá rodeado de lixo e gatinhos.
Pronto. A coisa podia ficar por aí. Um crime sem importância,
uma vítima sem importância, se não tivesse chamado a atenção de um detetive com
uma longa carreira de assassinatos e êxitos. Acontece que o Detetive Cliff
tinha por hobby colecionar livros raros. Esse pormenor irmanou o grande detetive com o humilde mercador de
livros preciosos. Ingrediente perfeito para uma história de suspense.
A frequentadora de sebos, pseudo-escritora de textos, não
sabe o que vai sair daí. Pede desculpas. Está só no quinto capítulo. Faltam
cinquenta . E ela não quer dar moleza pra ninguém. Tem fé de que ela, o
detetive e o autor vão descobrir o assassino. Um crime não deve ficar impune.
Ela vai ficar devendo o texto semanal. Urge seguir as pistas
enquanto estão quentes, primeira regra de uma investigação. Pede a compreensão de todos, porque uma
precisão maior se alevantou.
Maria Solange Amado Ladeira - 07/10/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br
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