Vingança

 

Vingança

Solange Amado

Temporada 1. Episódio 1:

A galeria ela conhece como a  palma da mão. Frequentemente se reunia ali, em tempos de antanho, com seus companheiros de copo e de cruz. E durante o dia, gostava de percorrer reverentemente seus inúmeros sebos. As prateleiras repletas de bons achados, que ela folheava entre uma birita e outra no andar de baixo. Um lugar repleto de juventude e muitas histórias.

Isso foi há mil anos. Desde então, os copos foram diminuindo e as cruzes aumentando. Os companheiros deram de adoecer, sumir. Alguns até cometeram a desfaçatez de morrer.

Não obstante, ela continua teimando em vagar, muito raramente,  pela galeria escura. Muitas portas fechadas, lugar meio sujo e caótico. Nada a ver com a vivacidade de outrora.

Foi então que alguém que sabe das suas preferências lhe indicou uma das preciosidades de Stephen King, coisa muito antiga. Ela arrisca o fundo da galeria.

Era apenas uma portinha. Prateleiras atulhadas, um caos completo, organização zero. Vida de santo agarradinha com 50 tons de cinza e livros de receita. O cheiro de mofo e poeira comendo solto. Ela avançou no meio do entulho e lá no final do corredor escuro avistou uma mocinha de short, camiseta e cabelo cor-de-rosa. Fazia as unhas e se balançava ao som de alguma música saída do seu fone de ouvido.

“Você teria alguma coisa do Stephen King?” A mulher repetiu três vezes. A moça deu uma última assoprada no esmalte e franziu a testa. “É auto-ajuda?” “Não. É terror”. O que, vamos e venhamos, dá no mesmo, mas a mocinha não sabe disso. Olhou o computador. “Pode ditar o nome pra mim?”. “S, T, E...”. “É King de King Size?” “Não, de King Kong, seu parente”. Não falou, só pensou. “Com K” murmurou educadamente.

Não. Claro que não tinha. A mulher agradeceu e se virou pra sair. Então se lembrou que há muito andava procurando livros do poeta Manoel de Barros. Sempre em falta. Quem sabe entre aquele poeirão havia algo?. Afinal, essa mistureba era a cara dele.

Arriscou a pergunta. A moça franziu a testa. “Quem?”. A idosa disparou porta afora antes que a jovem perguntasse se era auto-ajuda. Mas tinha algo sobre Ademar de Barros. Quebrava o galho?

 

Temporada 1. Episódio 2:

Tarde modorrenta. Sol comendo lá fora, amolecendo o asfalto. Graças a Deus ela estava em Denver, Colorado, onde o livro a transportou com todas as despesas pagas. A princípio, a distância entre Denver e a porta da sua casa não deixou que ela ouvisse o ruído. Aí, água mole em pedra dura... um miado. Ela abriu a porta e ele entrou chispando, mijou no tapete e ficou ali tremendo de medo, pequeno e cinzento. Só um gatinho perdido. Caracas! Ela não tem comida pra gatos e nenhuma queda especial por esses seres, principalmente quando mijam no seu tapete. Botou leite e água pra criatura que, visivelmente tinha fome e uma mãe distraída.

O porteiro localizou a mãe da criatura, que estava “trabalhando” e o gato era useiro e veseiro em se perder nos corredores escuros.

A tarde inteira a senhora teve de se dividir entre o livro e o bichano até a mamãe distraída ir  buscá-lo.

E adivinhem! Mamãe era nada mais nada menos do que Cabelo Cor-de-rosa, ela ao vivo e em cores, K de King Kong e até rolou um papo de boa vizinhança. A senhora ficou sabendo que o sebo do fundo da galeria é do tio, que pra não fechar o negócio mambembe, paga uma mixaria pra sobrinha, e a família banca a moradia. De livros mesmo ela não entende bulhufas, seu negócio é balada e pagode. E como é que pode alguém gostar de um troço chato como ler, e ler livros velhos. Fala sério!

Temporada 1. Episódio 3 (Final)

Nosso prezado gatinho já fugiu mais três vezes e bate o ponto na porta do apartamento da velha senhora que,  coração mole, abre  a porta e ele mija no tapete. Pontualmente.

Ela ainda não esfolou o gato ou sua dona de cabelos cor-de-rosa. Por enquanto, gasta o seu ódio e ressentimento esfregando o tapete pra tirar o cheiro de mijo.

Não obstante a cruz já estar de bom tamanho, ontem, véspera de feriado, a senhorita King Kong passa um óleo de peroba básico na cara e bate na porta da velha senhora. Sem mais aquela, pergunta se ela pode ficar por uns 4 dias com seu gatinho pra que ela, King Kong, viaje com seu namorado.

E aí, Deus seja louvado! Hora de vingar o tapete mijado! A senhora idosa responde candidamente a uma mocinha estupefata: “Não posso, meu namorado é alérgico a gatos”.

Já não se fazem vendedores de livros como antigamente.

                                www.versiprosear.blogspot.com.br    10/1021

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