Copo de requeijão

 

Copo de requeijão

Solange Amado

 

Dura Lex sed Lex. Copo de requeijão não quebra nunca. Princípio científico. E aí, os “cristais Poços de Caldas” vão enchendo os armários da tia como ervas daninhas.

Dia desses ela se revoltou. Saiu distribuindo: família, amigos, porteiro, faxineiro. Mas reservou meia dúzia pra si. Foi o seu erro. Aquela meia dúzia serviu de indêz. Enquanto isso, seus copos bonitos vão sobrando pras visitas do naipe da Rainha Elizabeth II. E como a Beth anda doentinha, dificilmente ela vai dar as caras. A situação pede coragem e decisões fortes.

A tia sofre do famoso “espírito de pobre”. Coisas mais caras são poupadas para dias santos e feriados nacionais. Mesmo assim, a louça marca barbante tem seus momentos de glória. Dia desses, uma visita, tomando café em uma xícara comprada nos idos de 1980 nos montões da rua dos Caetés, exclamou: “Que linda! Louça inglesa. Aposto!” A tia baixou os olhos com modéstia. Quando a visita saiu, ela olhou no fundo da xícara. Com todas as letras estava lá escrito: “made in China”. Nunca quebrou.

Bom, mas voltemos às decisões fortes. É isso. Na TV rola um jogo de vôlei com uma jogadora de cabelos cor-de-rosa e nome de cerveja. Não precisa ser tão radical, mas a tia fez uma promessa solene de acabar com a era dos copos de requeijão. Ainda vai manter as xícaras “made in China”. Dependendo da visita, não dá pra desperdiçar a porcelana finissima que ela não tem. Só vai abrir as caixas quando Elizabeth, the second, aparecer por essas bandas. Mas é sua última concessão ao espírito de pobre.

Ainda é atraída por montões, araras de roupas em oferta e prateleiras de livros usados. Mas isso vai mudar breve.

Claro que recaídas virão. Ainda vai guardar embalagens de sorvete e potes de margarina para eventualidades domésticas, e porque, afinal, o meio ambiente agradece, mas copo de requeijão... tá fora!

Cabe aqui um esclarecimento, ou um escurecimento pra agradar a turma da lacração. A tia não tem nada contra copos de requeijão em si, ou araras de oferta de roupa. A antipatia está no fato de “não usar pra não gastar”, quando ela já se desgastou todinha.

Há muitos séculos atrás, tinha uma vizinha que andava sempre de vestidos e camisolas andrajosos, abaixo da crítica. Fazia excelentes quitutes que a tia consumia com seu estomago de avestruz. Tinha pena da velha, sempre com o guarda-roupa remendado. Pois quando a velha morreu, suas gavetas estavam cheias de vestidos e camisolas novos em folha e lindos, que as filhas lhe davam. Não usava pra não gastar.

“Espírito de pobre” é isso. Saia dessa! As jaboticabas estão ficando escassas na bacia.

Daí ela ter tomado essa decisão radical. Hoje ela deu adeus a seu último copo de requeijão.

Atrás do copo de requeijão ela se despediu daquela xícara de asa partida que pertenceu à vovó, o tênis que machuca o dedão só porque usou uma única vez  e é bonito, a foto na praia, em preto e branco do namoradinho, com o cabelo à Elvis Presley, de quem ela nem lembra mais o nome. Mas se lembra da praia e da descoberta de seus relevos – seus e da praia. Olé!

Assim, vai se soltando no espaço. Se o paraquedas não abrir, não vai ser nenhum copo de requeijão que vai salvá-la.

Quem sabe consiga assim fazer que nem Carlos Drummond de Andrade: “pois que aprouve ao dia findar, aceito a noite”.

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira          -    21/07/2022

www.versiprosear.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário