Sempre pode piorar

 Palavras com transtorno bipolar

Palavras com transtorno bipolar

Solange Amado

 

Amanheceu. Ela pega a viola e vai cantar noutra freguesia uma canção feliz. Não. Na verdade, não tão feliz. Só uma canção.Sem adjetivos. As palavras levantaram voo. Nem sabe o que vai cantar. Mas vai. Um dia. Quando elas voltarem. Porque palavras são assim, nos traem muito facilmente. Elas nos abandonam. Mas sempre voltam se não as capturarmos , se não as prendermos na nossa cachola. Se soubermos perdoar, elas voltam. Isso se você não pegar no pé. Ela (a escritora) não costuma perdoar, mas também não encana. Vai tocando a vida. Às vezes as palavras são como aquele seu antigo namorado: pernósticas. Se fazem de difíceis. Problemático conviver com a distimia dessas criaturas.

Às vezes ela pensa que suas palavras sofrem de transtorno bipolar, ou levando-se em conta os muitos anos de convivência, podem estar iniciando um processo de Alzheimer. Ela se lembra de um livro que leu. A autora descreve o pai como um cara machão e preconceituoso ao extremo. As mulheres e os negros eram suas principais vítimas. Já velhinho e sofrendo de Alzheimer, ela o internou em um asilo. Um dia, ao chegar para visitá-lo, ele estava sentado com um grupo de velhinhos, e  de mãos dadas com um negro. Algo impensável. Não porque tenha acendido uma luz no  cérebro dele para perceber a insensatez de seus atos anteriores, mas justamente porque qualquer espécie de luz se apagou. Ele apenas se esqueceu do preconceito. A essa altura do campeonato, nada mais importava.

É o que ela tem medo. De que um dia não haja luz, ela nem precise brigar com as palavras. Dia em que todos os gatos sejam pardos. De que as cores se esmaeçam. De que todos os dias sejam domingo. De que todas as palavras sejam cinzentas. Que ninguém mais saia da linha e que não haja insensatez. Impensável não haver insensatez! Ela e as palavras sempre na posição papai e mamãe. Criatividade de quarentena, criatividade desinfetada com álcool gel.

É isso. Um dia as palavras talvez voltem pro monastério da mesmice,  e elas  se acomodem num amor de outono, sem grandes tremores, sem palpitações, sem orgasmos. Apenas a normalidade. Uma vez por semana com bis aos domingos se for muito satisfatório.

É preocupante quando a criatividade fica parecendo feijoada vegana. Insossa.  Ela sabe disso. Quando as palavras empreendem fuga com demasiada frequência, é porque falta molho. Sem cravo e canela, não há Gabriela que aguente.

Violão em punho, palavras que fugiram do papel e da canção, friozinho da manhã comendo, a escritora se entrega a mais uma elucrubação pandêmica, quando sua amiga dos trinta gatos e cachorros  telefona preocupada. Ela com tosse de fumante, os cães com tosse de canil. Recebem a visita do médico e do veterinário. Ambos receitam gotas.

O detalhe preocupante é que a amiga trocou os vidros. Há quatro dias  está tomando as gotas dos cachorros e eles engolindo as dela. Ainda bem que o que não mata engorda. Ela melhorou, os cachorros não. O humano tá em baixa. Até os remédios deles não funcionam. Talvez a alternativa seja começar a latir e a miar.

Haverá alguma saída para uma escritora sem palavras?

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                    21/07/20

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