Perder e se perder

 

Perder e se perder

Solange Amado

Na cerimônia de coroação do Rei George V, da Inglaterra, lá pelos anos 40, o Palácio de Buckingham sempre cuidadoso, publicou um “Manual de Instruções” de 212 páginas. Era só adquirir o dito cujo e estava lá, tudinho, de cabo a rabo , o que se podia e o que não se podia fazer durante o evento.

E nós aqui, nessa zona com a tal da covid, mais perdidos do que cego em tiroteio. A OMS nunca soube com quantos pauzinhos faria uma canoa. Tira máscara, bota máscara, fecha tudo, abre tudo, remédio é bom, não é, toma vacina, toma vacina, toma vacina (já lá vamos pra quarta rodada). O vírus é mais esperto, vira a esquina, troca a máscara,  volta triunfante e vai sambar na avenida. As sumidades científicas guerreando entre si por quem tem mais sabedoria. E os laboratórios faturando sobre essa loucura. É mole?

Seria bem mais simples pegar o Manual de Instruções do Palácio de Buckingham. O Rei vai sair pela esquerda ou pela direita? O populacho deve aplaudir educadamente com palmas ? Quando?  E nada de hip hurra! E a família real deve se preservar das baixas temperaturas. No máximo aparecer em lives. Nas ruas, ao vivo e em cores, só o povão olhando uns para os outros do lado de fora. Na catedral é só festa.

Aquele tio fedapê que renunciou à Coroa por outra coroa, deu uma banana para as luzes da ribalta e a maior rasteira nos lambe-botas: “Tô fora, cambada. Vou me embora pra Pasárgada”. Não foi. Foi pra Paris. Mas continuou irmão do Rei. Não adiantou muito. Os baba-ovos se adaptam muito depressa. Mais ainda do que o vírus. Trocam de máscara na próxima esquina e retornam à crista da onda. Caim vira amiguinho de Abel no vai-da-valsa, desde que não fiquem ao relento no vento e na chuva com a plebe, whisky escocês eliminando as diferenças. Assim, não há “ratas” indesejáveis. “O Rei é morto. Viva o Rei!”

Justiça seja feita, o Primeiro Ministro da Inglaterra, Boris Johnson tentou ler o Manual do Palácio de Buckingham pra não deixar a Inglaterra lá fora no frio, junto com a plebe ignara. Deu ruim. Escreveu não leu, o pau comeu. Ele não sabe que o lugar da leitura no cérebro não é o mesmo da escrita. Dá margem a  muitas interpretações.

A tarde vai afundando lentamente no brejo e na chuva e ela lá, grudada no livro que sua amiga lhe deu. Dá uma vontade danada de dividir esses achados. Ato contínuo, pega o telefone, disca o número familiar da amiga. A alegria é abortada. Lembra-se: ela morreu mês passado. Ainda não se acostumou. A troca de livros, os comentários,  as risadas, as fofocas, as idiossincrasias do mundo e de si mesmas. Algo que gruda. Vicia como o cigarro que a matou. É braba a síndrome de abstinência. Ela também vai morrendo devagarzinho nos amigos que desaparecem.

A única coisa que não dividiam era aquela paixão por bichos de quatro patas. Tinha montes de gatos, cachorros. Esses nunca a traiam, dizia. Nunca, vírgula. Houve uma exceçaõ quando foi adotada por um burro. Por motivos óbvios ela não pode colocá-lo pra dentro da Catedral de Westminster, então, ia lá pra fora, tomar o café da manhã com ele. O quatro patas farejou aquela alma piedosa e foi em frente. Do nada a criatura apareceu na sua porta, vinda da mata no fim da rua e foi tomando espaço.  Surgia pontualmente às 5 da matina e pedia, pedia não, exigia o seu café da manhã. Zurrava com o maior fôlego. E pra não acordar toda a vizinhança, ela saltava da cama e alimentava o bicho, que após uma prosa e algumas caricias, se escafedia.

Até que um dia ele a traiu. Não apareceu mais. Nunca mais. Sem nenhuma explicação. Claro. Sua amiga não era uma quadrúpede, mas ela desconfia que sim, ela é.  Da melhor qualidade, porque anda desinventando o mundo que conheceu, desmemoriou de vez e a prosa de qualidade se desintegrou diante do estarrecimento de um mundo lunático.

A amiga partiu sem saber que o livro é bom, mas tem 920 páginas. Mais do que o Manual do Palácio de Buckingham. E é brabo de se destrinchar sem ajuda de uma inteligência viva e de um senso de humor privilegiado pra aguentar o tranco.

Sim. Os amigos nos traem sim. Perdemos e nos perdemos nessa traição. Um belo dia não aparecem mais no café da manhã. Fica difícil de engolir.

 

 

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira          12/02/2020

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