Pandemia

Solange Amado

 

Ela começa uma longa caminhada entre a sala e o quarto, meia hora num trote ligeiro. A paisagem é a mesma. Pra quebrar a monotonia, acena pro quadro na parede, cumprimenta o relógio antigo que a saúda com graves badaladas. Às vezes, o vizinho, lá da sua área de serviço diz um oi discreto.

Menos hoje. Hoje o tempo ficou quente entre o casal dono da área de serviço, sempre tão discreto, a bem da verdade. Ela ouve o desespero do marido, e o barraco começa:

- “Caracas! Mal entro em casa e sou obrigado a tirar os sapatos, tirar a roupa, andar nu pela casa até o banheiro e me meter no chuveiro com uma trouxa embaixo do braço. Agora mais essa! Jesus! É de enlouquecer”.

“Você sabe que tem um corona lá fora?”

“É. E uma velha coroca cá dentro!”

Não se sabe o que foi o “mais essa” que enlouqueceu o pobre homem, mas o bate-boca vai indo nesse diapasão, sem direito a poder apertar o botão do controle e diminuir o som. O trote rápido da velha senhora continua.

Lá fora, estão trocando o telhado do prédio dos Correios. Enormes vigas de madeira são jogadas de um lado pra outro, e alguns andares acima do seu, uma britadeira funciona a todo vapor, demolindo e reconstruindo um apartamento .

Não bastando as vigas do teto dos Correios,a britadeira no apartamento acima e o marido pelado aos berros com a esposa estressada, o Netflix pifou e ela desenvolveu uma síndrome de abstinência.

E agora, José? TV nem pensar! Noticiário é filme de terror. A mídia tratando as mortes como se fossem gols em final de campeonato: Oba! Mais uma! Passear no Shopping? Vade retro. Tem um corona lá fora.  Cafezinho com os amigos?  Ela compra os quitutes, bota na mesa, coa um cafezinho esperto, mas os amigos estão arredios, entocados. Todo mundo no grupo de risco. É bebé? E se?  Compra um Valpolicella Bolla pra atrair os incautos enófilos da sua turma. Nem assim.  Uma vodka Absolut talvez. Não dá ibope. Todo mundo na sua bolha. Talvez, quando isso tudo acabar... E se não acabar? Vai virar uma carmelita descalça?

E ela continua sua marcha acelerada entre a sala e o quarto. A torneira da pia está pingando e as plantas se recusam a florescer esse ano. Ela conversa com elas e tenta convencê-las a reagir. Néca. Estão definitivamente com a crista baixa.  Talvez, se esmagar um antidepressivo na água elas levantem a cabeça. O vizinho furioso passa de cueca na área de serviço. Nem te ligo se alguém está vendo. Estamos todos pelados e uniformizados nesse desespero.

Na porta do elevador, a vizinha de 3 aninhos avisa que tem um verme lá fora comendo velhinhos e velhinhas. Ele entra pelo boca e pelo nariz. Do alto da sua sapiência, manda essa:” você é velha, né? Não devia estar indo pra rua. Meu pai é mais ou menos velho. Ele ainda pode ir”. A mãe diz que ela pede todos os dias pra ir ao Parque dar comida aos peixinhos,  andar de trenzinho e fazer novos amigos. E se os peixinhos morrerem por falta de comida? O pai compra bonecas que falam, choram, mamam e fazem xixi, para ver se ela se ocupa. Mas o brinquedo preferido é enfileirar suas filhas e dar banho nelas. Lavar, lavar, lavar. A mãe tem medo que isso se torne uma obsessão. Pois a senhora idosa tem certeza que o mundo inteiro já está obcecado em brincar de lavar.

A simpática moradora do quarto andar, muito jovem, tem uma escadinha de três crianças loiras, lindas e agitadas. Sem babá, sem cozinheira, sem o marido que sai pra trabalhar, ela confessa que já perdeu um terço dos cabelos com três anjinhos presos em casa, e por ora, se concentra em não surtar ou a vaca vai definitivamente pro brejo.

D. Genoveva, a velhinha de quase cem anos que passeava pelo prédio com seu indefectível cachorro idoso, gordo e cagão, teve um derrame. Foi pro CTI. E o cachorro chora desesperado noite e dia. Ninguém sabe o que faz. E o Netflix não funciona.

O bombeiro mascarado adentra o recinto, emporcalha o banheiro, mas troca a torneira. Ótimo. Se o mundo tá de pernas pro ar, pelo menos a torneira tá funcionando. A sua, claro, porque a do mundo desandou. Ninguém deu conta de consertar.

Talvez a solução seja passar álcool gel na esfera terrestre, tacar fogo e começar tudo de novo, sem Adão, Eva ou paraíso, porque essa história é velha e deu no que deu.

 Talvez a questão não seja resistir, mas RE-EXISTIR.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira  - 12/08/2020

www.versiprosear.com.br

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