Na ponta da faca

 

Na ponta da faca

Solange Amado

 

Nós nos encontramos recentemente, numa esquina  qualquer. Mais de 50 anos depois. E ela exibia o mesmo sorriso aberto, os mesmos olhos vivos, a mesma simpatia. Houve marido, filhos, netos, lutas e alegrias e ela estava ali. De pé. Ainda cheia de energia. Espalhando a força que me atraiu quando ainda éramos adolescentes, cheias de desejos e sonhos, com a vida se estendendo vasta à nossa frente. Nos tornamos inseparáveis. Até aquele dia, quando a fita métrica de Deus nos surpreendeu.

Recordamos aqueles tempos felizes e despreocupados e rimos muito dos sonhos meio tronchos que alimentávamos. Até que a faca afiada do real botou um fim naquele namoro com a vida.

Naquela manhã, a jovem quebrava a cabeça com sua lição de matemática, sentada à mesa da copa. Única mulher, no meio de quatro homens, era a “queridinha do papai” e tirava proveito dessa vantagem.  O pai tinha a maior fama de “galinha”, mas se isso aborrecia a mãe e causava nela algumas reações intempestivas, as coisas sempre se ajeitavam. E a menina tocava a vida, a matemática e a adolescência, com o agridoce do dia-a-dia.

E então a campanhia tocou. Na cozinha a mãe, faca em punho, corta os bifes do almoço. A menina se levanta e abre a porta. A mulher desconhecida entra intempestivamente porta adentro, vai até a cozinha e se identifica: é a “outra”. O tempo fica quente. Desaforos são trocados e a menina se assusta.

Podia ter ficado por aí, mas há a faca. A mãe levanta o braço e golpeia fundo a outra com a força da sua raiva. Morte. Terminou?

Sangue, gritos, vizinhos que entram e saem. A polícia e a prisão. O mundo ruiu. Aquela faca se enfiou fundo no coração daquela família. Um estrago inimaginável.

Anos de prisão e a mãe jamais se recuperou. Acabou falecendo ainda jovem. Culpa e desorientação lançaram o pai numa “terra de ninguém”. E os filhos se espalharam.

Minha amiga teve de sair do colégio. Ainda mantivemos contato por algum tempo. E foi aí que a conheci de verdade, ou melhor conheci as dimensões do humano. Esse negócio de não desistir, de sorrir, de cantar, de usufruir de um prazer, apesar de. Ela nunca entregou a rapadura.

Depois de um primeiro choque desse tsunami na vida, tão destruidor, tão esmagador, a “princezinha do papai” revelou-se uma mulher guerreira. Perdeu o sapatinho de cristal, a carrugagem virou abóbora. E ela foi a pé, pisando com força seu chão. Sem recuar. De cabeça erguida.  Casou, mudou e não me convidou.

Me pergunto se ainda canta, com uma voz muito linda. E se ainda escreve. Uma escrita que costumávamos dividir entre risadas, como uma espécie de curativo para as feridas da vida.

Hay que não desistir. Afinal, não é isso que diz Izabel Allende? “Na escrita, a felicidade não serve para nada, sem sofrimento não há história”. 

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira           14/08/18

 

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