Espada de São Jorge

 

Espada de São Jorge

Solange Amado

Enquanto a maca rolava pelo corredor do hospital, ela pensava num lusco-fusco de consciência: “E agora, José? Surpresa! Ela não era imortal!”

O sobrinho foi o primeiro a aparecer. Um tanto alarmado com aquele peripaque repentino: “Então, tia, cadê sua carteira?”. “Que carteira?”. “Do convênio, uai!”. “Que convênio?” “De saúde, tia! Você tem um, não tem?”

A notícia caiu como uma bomba no colo da família. A tia não tinha um convênio de saúde. E pegara a peste chinesa. Um passaporte para a morte. Nossa Senhora!

Ela nunca pensara nisso. DNA bom. A mãe morrera de velhice. Foi indo até se apagar aos 102 anos. O pai foi um pouco mais cedo. Ele se dizia um carro velho, sem grandes revisões . Quando parou, parou de vez. Por que seria diferente com ela? O túmulo, a família já tinha. O que mais?

Não se abalava, o Posto de Saúde da rua cuidava esporadicamente das poucas mazelas. Pressão, colesterol, glicose? Isso podia esperar os 100 anos. Quem procura acha. Melhor não dar sorte para o azar. Afinal, ela acabara de fazer 70 anos. Pra quem vai morrer lá pelos cento e poucos, estava ainda na adolescência.

Enquanto isso, andava até espichando olhares para o Seu Florisvaldo, dono da padaria e da Banca de revistas da esquina. Ele não era avesso a esses olhares carregados de intenções. Arrastava asa quando ela passava. Por que não? Ele era um velho imponente, ascendência italiana, boa cepa, boa prosa e de quebra, gostava de ler. Ela também. Sopa no mel. A idade era indeterminada, mas isso não tinha a menor importância. Rolava um clima, dava pra perceber. Ano passado, ela foi a Veneza, passeou de gôndola. Sua primeira viagem internacional. Mandou muitas fotos pro Seu Florisvaldo. Ele ficou encantado. Arriou os quatro pneus. Engataram de vez um namoro. Tudo de bom.

O único senão era resistir à pressão do Florisvaldo pra juntar as escovas de dente. Não ia rolar. Ela gostava de morar sozinha. Cada um com as suas chaves e as suas manias. Juntar manias de velho nunca foi uma boa.

E ela ia levando. O sexo? Havia. Em doses homeopáticas. Não era um terremoto, mais um bradissismo. Dava pra chacoalhar um pouco, mas com o passar dos anos e o andar da carruagem, bastava.

A vida corria em ritmo de Maria Fumaça. Agradável e serena. Flor (era assim que ela o chamava) definitivamente trouxe cor e perfume à sua vida. Era uma sortuda. Saúde, alegria e Seu Flor. Pão e livros.

A vizinha aconselhou plantar Espada de São Jorge na entrada da casa. Evita mau olhado, protege a saúde e o astral da casa. Ela nunca acreditou muito nessas histórias. Não o fez.

E um dia, do nada, sem mais aquela, a peste chinesa invadiu o espaço. Com força, focinheira e isolamento. Inventaram os tais de “grupos de risco”. Ela e o Flor incorporados. Mas pra Seu Flor, risco maior era abandonar seu ganha-pão. Assim, continuou a batalha e o romance. Verdade que meio chato, com tantas proibições e ameaças. Beijos e abraços eram contrabandeados, ilícitos, passíveis de prisão em flagrante, reféns do medo. Nada era como antes com aquele esparramo de alegria e prazer.

E aí, o tsunami chegou até eles, Primeiro o Flor, encarcerado dentro do hospital. Mas forte e sereno. Tinha fé, aquele italianão sempre otimista. Ele aguenta, pensou.

Uma semana depois, o  barulho da maca e entre os vapores da inconsciência, a voz do sobrinho: “e então, tia. E a carteira? “. Era a sua vez.

De muito longe, ouvia que o Flor resistia. E planejava o reencontro. Tinham muito tempo pela frente. Desceu aos infernos, mas a esperança e os sonhos a sustentaram. Ainda ia passear de gôndola com o  Flor. Ele tinha planos, inclusive o de saúde, alegria e fé na vida. E tinha prometido Veneza.

Ela sobreviveu. Verdade que não foi um Happy End. Pro Seu Flor a história teve só um End. Ele não voltou. Foram-se as revistas, os livros, a alegria ruidosa. Ficaram as lembranças e a peste chinesa rondando a casa.

Pensou em plantar uma Espada de São Jorge na porta da casa. Talvez se tivesse plantado...

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                    20/02/2021

www.versiprosear.blogspot.com.br

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário