Palavras que (não) consolam

 


Palavras que (não) consolam

Solange Amado

A velha senhora deita a cabeça nas almofadas. Não vai escrever nada. Anda cansada de guerra. Hoje era pra ter sido melhor do que ontem. Não foi. E amanhã, será um pouco pior. As palavras são farsantes. Elas só passam vaselina. Não trazem nenhum alívio.

Ela não sabe quem é Walter Franco, mas escuta a sua canção que se espalha como uma presença física pelo quarto:

“É uma dor canalha

                                                              Que te dilacera

                                                              Não tarda nem falha

                                                              Apenas te espera

                                                              Num campo de batalha

                                                              É um grito que se espalha

                                                               É uma dor canalha”.

Ela sabe. E não adianta. A canalhice tá comendo solta, desembestando morro abaixo, enquanto ali, entre quatro paredes, ela arruma gavetas e desarruma a vida. Um pouco de nada, um pouco de flor, um fiapo de sol, o ruído da chuva. São só palavras que ela tenta pescar, mas não resolvem o problema.

Sonho ela compra até na padaria, mas esperança não se inventa. Ela só sabe que é verde. E cheia de insensatez. Ela até já teve uma, em tempos remotos. Mas era vermelha, rubra de paixão. No fim, desbotou, Ficou um rosa meio lambisgoia, desmaiado, como sua fé nas palavras. Fé cor-de-rosa não dá pro gasto.

Rosa só combina com cupcakes inconsistentes de padaria, tão cheios de creme que desenham um bigodinho de açúcar acima do lábio superior pra enganar o paladar.

Tem gente assim, açucarada, e tem palavras cuja meiguice dá azia, tal o vazio de conteúdo. Também tem palavras que doem, ardem na língua, batem, esfolam, lancetam. E não curam.  Não se sabe por qual defeito de personalidade, ela prefere as últimas, as do tipo brutamontes, coisa de amor bandido. Que também não resolve, mas fazem de conta. Por via das dúvidas.

No momento, ela dispensa qualquer uma: dor rimando com flor, passarinho que rima com carinho. Todos os seus sentidos estão preenchidos por essa dor canalha que não tarda nem falha. Palavras são só falsificações da dor.

Os monges tibetanos estão desde 2014, proibidos de reencarnar sem a devida autorização do governo chinês. Mesmo assim, eles reencarnam. É isso que incomoda.

 

Palavras banidas são como os monges tibetanos. Elas reencarnam burlando a vigilância da velha senhora e teimam, e rimam amargas ou açucaradas. Amolam feito coceira de piolho. Não dão trégua.

Talvez, quem sabe, um decreto do governo chinês proibindo palavras resolvesse. Isso e um sonífero, quem sabe, calassem as vozes que a velha senhora ouve. Leminski já pensou nessa solução, mas foi só um pensamento fugidio. E não deu certo.

Então, a provecta criatura pega seu livro.  Só quer pegar carona nos escritos dos outros, sem a responsabilidade de ser mãe deles. Ou avó.

Mas a algazarra das palavras não desiste e rompe o lacre dos seus propósitos: elas reincarnam. Embora não haja nenhum mérito nessas reincarnação. É tudo inútil, porque a única coisa que conta, é essa dor, essa dor canalha!

 

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                 13/11/2020

www.versiprosear.blogspot.com.br

 

                                                             

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário