Reciclagem






Reciclagem
Solange Amado

Inspiração muita. Transpiração pouca. Piração em abundância. Essa é a fórmula da felicidade. Pelo menos a do escritor. Mas Deus não dá asa pra cobra. Não é nada mamão com açúcar. Dói.
Papel e caneta entre os dedos, como um animal em extinção, ela vai em frente, mesmo porque, andar pra trás nem caranguejo usa mais. Ela mudou de postura quando viu que quem vive de passado é arqueólogo. É claro que há controvérsias. Na Escrita, o passado pode dar bom caldo.
Se ela fosse irlandesa, poderia ser um James Joyce de saias. O povo gosta de coisa complicada. Mas a geografia lhe passou uma rasteira e ela teve que nascer num país pelejento, onde escrever é supérfluo. E aí, o jeito que tem é bancar o Sísifo das letras.
O que dá certo é comida. Dizem. Um dia ela abre um restaurante onde as pessoas comam letras. Não uma mera sopa de letrinhas, mas cardápios sofisticados. Uma Brastemp da literatura, como “Shakespeare ao molho gorgonzola”. Um lugar onde nada “tem de ser assim”, onde não se amarre a imaginação com regras, pode-se usar qualquer molho, o alimento é multiuso. Voz ativa e voz passiva. Um alimento que a gente coma e que nos coma ao mesmo tempo.
Não que ela queira ser uma escritora do outro mundo. Se produzir alguma coisa nesse, já tá bom. Basta que ponha o pé na estrada e suba a ladeira manquitolando. Onde não se pode chegar andando, hay que chegar mancando. Freud ensinava assim. Tinha experiência no assunto. Não existe marcha sem curvas, refugos, vaciladas. E barreiras quase instransponíveis. Quase.
Os recursos são parcos. As palavras são domésticas, tímidas, complexadas. Será que aguentam as luzes da ribalta? De vez em quando, pra despertar o leitor sonolento, tem que se colocar uma palavrinha  besta no meio do texto ou a coisa toda toma o caminho da roça. Uma cutucada básica.
São muitas as anfractuosidades da Escrita. E assim mesmo, como quem não quer nada, você vai emgambelando o leitor. Melhor ainda se ele não sabe que palavra é essa. Talvez dê certo botar casquinha de limão no tropeiro. E nunca diga que ingrediente é esse. Na escrita, uma carta na manga é sempre uma boa pedida.
E aí a escritora vai refletindo. A noite vai entrando pela janela, sonolenta e molhada. E ela alí, agarrada no papel, na caneta e numa inspiração meio esgarçada que ela já usou semana passada. Não  foi possível comprar uma nova. Falta matéria-prima.
Mas teve uma ideia. Nas férias, pretende montar um brechó de inspiração. Quem tiver uma ideia pra vender, ela compra e recicla. Bota um frivolité, uma renda guipir, faz uma decoupage. E vende.
Vai arrebentar. Ela até vem garimpando umas antiguidades russas: Tolstoi, Dostoiévski, depois vai pegar umas antiguidades inglesas. Shakespeare no topo da lista. Daí, é só colocar uma fatiota nova no Raskolnikov, um complexo mais moderno no Édipo. E o ano que vem vai nascer luminoso. Se comprarem a ideia e desapegarem das suas tralhas vai dar o maior caldo. Só acreditar.








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Maria Solange Amado Ladeira                           26/11/2019


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