As articulações da escrita






As articulações da Escrita
Solange Amado

Lá em cima a paisagem é de tirar o fôlego. “Vamos lá tia! São só degraus. Você consegue!”. A tia respira fundo. Aquilo parece o Himalaia. Pode ser que consiga subir. Mas certamente, a descida vai precisar da presença  do Corpo de Bombeiros.
De qualquer maneira, ela não está sozinha. Basta ler a escritora francesa Benoite Groult. Estão irmanadas nas caqueiras: “não tenho mais que pedaços de madeira nas pernas. Sem lubrificação nem molas. A madeira está boa. A densitometria comprova. O problema são as articulações  que não articulam mais. Eu desço escadas com a cabeça”.
É isso. Ninguém acredita, mas ainda temos cabeça. Lá dentro, ali no cérebro, as juntas ainda têm lubrificantes e molas funcionando. E quando se pega papel e caneta, podem-se subir e descer escadas com a cabeça, até com relativa rapidez. Mesmo que não seja de forma diáfana, elegante, feminil.
Escrever é subir e descer  escadas. É percorrer estradas pouco pavimentadas. Escrever é o ato mais xucro que existe. Claudicante. Por mais azeitadas que estejam as juntas, não se pode produzir algo que seja bonito pra todo mundo. Só nos resta seguir o conselho da D. Benoite: “seja feio e cale a boca”.
Então, não se preocupe. Vá capengando pelas palavras. Se quiser subir as escadas, vai ser assim, cautelosamente, uma palavra atrás da outra, um trupico dalí e daqui, Mas mantendo uma elegância mambembe, modesta, que não carece de muito exagero. Machado de Assis dizia que há pessoas elegantes e pessoas enfeitadas. O mesmo para os textos. Muita lingerie complica, só mascara o desejo. Mas algumas preliminares são bem vindas antes de partir para os finalmentes. Um vela e desvela matreiro pra botar o leitor no ponto.
Podem pensar que isso é conselho de gente velha. O velho está sempre optando pela coluna do meio. O jovem vai direto na jugular. Tá sempre embarcando no TGV, trem cuja sigla, se não sabem, quer dizer, “très grand vitesse”. Tudo em alta velocidade. O chamado idoso prefere a cautela. Vão de Maria Fumaça, chegam na maciota, com um pé atrás do outro. O tico e o teco demoram pra se encaixar, mas acabam se colocando ajuizadamente no lugar.
A escritora francesa garante que a gente sofre, mas consegue apreciar a vista do alto do Himalaia, desde que sem muito açodamento.
Todo mundo sabe que D. Maria, a Louca, aprontava todas. Quando morreu, seu filho, D. João, ficou preocupado que ela fosse direto queimar no fogo do inferno. Vai daí que botou a Igreja Católica doidinha, exigindo que lhe assegurasse que a mãe passaria pelo purgatório. Foi tenso. Os padres divergiam e nunca chegaram a um denominador comum.
Pois é. Não sei vocês. Mas nós, a escritora francesa e eu, toda vez que a gente escreve, ficamos na coluna do meio. Primeiro a gente passa pelo purgatório, depois, subimos ao céu ou descemos ao inferno. Há controvérsias. Sempre.




Maria Solange Amado Ladeira         - 04/02/2020

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