Idealizações


Postado em 19/03/2017
Idealizações
Solange Amado

A moça estava andando pela calçada. Linda, loira, traços suaves, porte elegante, parecia um anjo caído do céu por descuido de São Pedro. Foi quando encontrou a pedra no meio do caminho. Ela tropeçou e saiu catando cavaco até poder resgatar o seu passo e sua dignidade. O rapaz parado no ponto de ônibus soltou uma piadinha. Ela levantou o braço e com os dedos, fez um gesto obsceno e soltou uma palavra idem.
Bastou isso pra me criar esse mal estar. Quebrou-se a ordem natural das coisas. São Pedro não deve ter sido assim tão descuidado. Não era um anjo. E não caiu do céu. O problema foi meu. Eu é que criei o anjo. E com o tropeço ele caiu direto no meu queixo.
E eu fico pensando nessa inclinação que nós, humanos, temos de idealizar situações e pessoas. Eu nunca votei no cara errado, nunca enfiei o pé na jaca, nunca comi gato por lebre. Eu crio um anjo, coloco-o num pedestal e fico sustentando ele ali, num equilíbrio mambembe, só pra não dar o braço a torcer. Mesmo quando o gesto obsceno é desovado diante do meu nariz, não posso acreditar que eu seja tão babaca que nem tenha notado que aquele anjo era torto.
Tive um cliente, cuja esposa arranjou um amante. Até aí tudo bem. Coisa corriqueira. O problema é que esse moço seguia o casal infiel, colocava detetives, tinha montes de fotos e vídeos. E tudo acabava na porta do motel. E toda semana ele vinha com o mesmo discurso: “não creio que ela chegue às vias de fato. Ela é muito religiosa”. E ele se segurou nessa garantiazinha pífia até poder encarar a falta. Não há anjos, não há garantias, não há perfeição.
Quando vejo a queda de braços que reina na nossa política, me lembro do meu cliente e do anjo torto tropeçando na pedra. Quem está traindo quem? A mulher é que trai o homem ou o homem é que trai a si mesmo refugiado na sua idealização? Apesar de todas as evidências, apesar das fotos, das filmagens, das gravações, dos documentos, das contas bancárias engordadas de um dia para o outro, não importa. Meu candidato só chegou às portas do motel. Não foi às vias de fato. O cornudo, o babaca, o que foi traído foi o vizinho. Eu não faço escolhas erradas. Eu não sou enganado. Meu vizinho sim, é tão idiota que a mídia o engana fácil fácil.
O mundo dos puros é maniqueísta. Dividido entre bons e maus. Santos e demônios. Os bons, no máximo vão até à porta do motel. A sem vergonhice fica por conta dos maus. Meus políticos vivem em odor de santidade.
Nunca ocorreu a eles que os bons fazem maldades e os maus fazem bondades. O tempo todo. Foram tantas as promessas em que a gente embarcou, tantos planos abortados por desvios no meio do caminho. Quantas boas intenções!
Eu sei. A decepção é grande. Nossos representantes, sem exceção de partidos políticos, nos enganaram, nos roubaram. Difícil aceitar que alguém em quem a gente acreditou, depositou tanta esperança, pisou na bola e nos traiu.
Caramba! Mais do que tudo, é difícil encarar o que se passa atrás das portas desse motel-Congresso. A gente se defende com unhas e dentes. Dá uma paranoia geral. Só pode ser armação. Quem foi eleito pra salvar a pátria, borra na entrada e na saída. E não sobra ninguém pra dar a descarga. Quem entra, navega nas mesmas águas. E não quer sair. Esse é um motel especial.
Difícil vai ser botar esse povo pra fora. Não sei como, mas uma coisa é certa. Uma vez constatada a infidelidade, não adianta negar ou botar a culpa no outro: ou o país escolhe ser corno manso ou exige respeito. Sem sofrência, sem aquele mi-mi-mi de somos injustiçados. A coitadice não deixa ninguém sair do lugar.
De minha parte, como não tenho compromisso nenhum com a perfeição, com a santidade ou com a sofrência, estico o meu dedão sem dó nem piedade pra essa classe política desprezível e exijo respeito. Assumo o chifre. Engulo a infidelidade. Mas prometo que não dou segunda chance. Sujou. Tá fora! Paciência tem limite.



Maria Solange Amado Ladeira                                19/03/2017
www.versiprosear.blogspot.com.br



2 comentários:

  1. Sol,
    "Idealizações" é relato mais do que apropriado para o momento que vivemos, tão cheio de decepções e desencantos (mas sem mi-mi-mi-mi). É bom "assumir o chifre", "engolir a infidelidade". Melhor ainda é saber se reconhecer não tendo "compromisso com a perfeição, com a santidade ou com a sofrência". Abraços. Etelvaldo.

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    1. Pois é isso aí, amigo. Ao invés de pelejar entre nós. Vamos pelejar por uma pátria melhor. Né? Abraços.

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