Postado em 03/11/2016
Crise?
Solange Amado
Nasceu um ser pensante. Por obra e graça de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Mas quis o Senhor que fosse também um ser falante. E mais, que
fosse mulher. E aí, sofreu disso o resto da vida. Não parava de palpitar. Não
segurava os pensamentos. Supitava de muitos porquês. E tinha uma canseira de
ouvir sem parar: “criança não palpita, criança não tem de pensar, tem de
obedecer, mulher tem de sofrer”. Havia ainda uma outra pérola que ela achava
muito poética, mesmo sem entender muito bem: mulher é renúncia. E a vida foi
correndo assim, cheia de nãos. Muito mais gauche que a de qualquer poeta de
Itabira.
Naquele tempo, os adultos eram muito inteligentes e o que
eles diziam, tinha o carimbo de infalibilidade. Mas o certo é que não se
emendou. Boca maldita que era, pegou fama de arranjar encrenca. Ser mulher,
pensante e falante não é uma boa mistura. Coisa demais pra tanta fragilidade
feminina. Mas depois que o Senhor errou a mão, não há como voltar atrás. Tem que ser mulher, falante e pensante
pelo resto da vida. E dar bom dia a cavalo, porque isso é parte do pacote.
Foi quando pegou a gostar do que, digamos assim, funcionava
na marginalidade, de vez que esse funcionamento meio troncho era sua praia.
Mergulhou nas mentes fora dos trilhos e hospital psiquiátrico adentro, onde o
carnaval não durava três dias, mas a vida inteira. E a saída era muito mais
difícil, senão impossível.
Foi quando teve a ideia. Ao ver pacientes deambulando numa
camisa de força química, agarrados aos seus eternos pacotinhos, com conteúdos
surpreendentes pela inocuidade – palitos, caixas de fósforos vazias, pau de
picolé, etc, teve a brilhante ideia de fazer seu pacotinho de palavras inócuas.
Se funcionava para eles como uma defesa da despersonalização, se assim tentavam
exorcizar as pulsões desenfreadas de dentro e de fora, por que não? Talvez
pudesse exorcizar brigas, discussões, mal- estar, saias justas, evitaria culpa,
angústia, egos ofendidos e chineladas na bunda decorrentes de sua língua
grande. Dentro do saquinho só palavras que não incomodam e sejam garantia de
terreno neutro – calor, sol, chuva, frio, dores variadas, desde que sejam
ligeiras; peças de teatro, filmes (não valendo opiniões pessoais sobre os
mesmos), e coisas que tais. Tudo andava
funcionando bem, até o primeiro dia de carnaval, quando o verso vira reverso e
ninguém mais sabe onde fica a rebimboca da parafuseta.
E eis que em plena segunda- feira, lá vinha ela pela rua,
carregando um abacaxi, algumas laranjas e seu pacotinho amuleto de palavras,
quando se viu no meio de um bloco descendo a rua. Em sua direção veio
manquitolando uma havaiana gordinha, apoiada em uma bengala. Reconheceu de
pronto. A bengala, não a havaiana. O nome lhe fugiu. Em algum momento da
existência seus caminhos se cruzaram. Onde? Não importava. Sacou da algibeira
seu saquinho de palavras e esperou.
Foi quando a figura abriu os braços e gritou “Ô coisinha!!!”
Coisinha não existia ainda no seu pacote, mas era uma palavra a ser
considerada. Coisinha é uma palavra libertadora. Quer dizer nada e tudo.
Coisaria pois.
Trocaram amenidades. Falaram de frutas, flores e flautas e
outras coisinhas. Foi quando o estoque do saquinho se esgotou. Sobrou a palavra
crise. Crise é unanimidade, ou assim pensou. E a crise? Foi então que a vaca
foi pro brejo. A havaiana arrebitou a tanga: “Crise? Que crise? Então,
coisinha, você ainda não sacou que a crise é criação da mídia? Pensei que fosse
mais inteligente”... E tome indignação, e tome discurso alguns decibéis acima
do carro de som.
E a “coisinha” ficou alí, largada, perdida, desapontada com
aquela palavrinha lazarenta atravessada na garganta. Pegou a duvidar da
segurança do seu saquinho de palavras escolhidas a dedo. Pelo menos, dessa tal
de crise não fala mais, é carta fora do baralho.
Nossa amiga anda aceitando ajuda dos universitários pra
formar um novo estoque de palavras neutras . Terreno neutro nunca foi seu
forte. A única certeza que tem é que nasceu um ser pensante.
Maria Solange Amado Ladeira
23/02/16
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