O domingo e o sabiá


Postado em 29/08/2016
O domingo e o sabiá
Solange Amado

“Alguns guardam o domingo indo à Igreja . Eu guardo ficando em casa tendo um sabiá como cantor” * , mesmo que o sabiá esteja no galho de uma árvore a duzentos quilômetros de distancia, isso não tem importância nenhuma, quer seja canto de um sabiá, de um rouxinol ou até de um bem te vi.
O sabiá em questão, não obstante não estar por perto, fica lá pousado no galho da laranjeira e canta. Eu sei, porque me disseram que sabiá canta, tenha ou não plateia, fã clube ou orquestra pra acompanhar. E  nem canta porque é domingo. Domingo pro sabiá é só mais um dia de cantar. Pra mim é só dia de ficar em casa, botar pijama e abrir as janelas, que nos outros dias da semana, sem sabiá, elas ficam fechadas.
Foi assim, dessa maneira desavisada que aprendi a cantar. Nem subi no galho da laranjeira. Não precisou. Bastou botar reparo na melodia, nas pausas, na entonação, na suavidade do trinado e pronto!
Mas vocês sabem, além de cantar, o sabiá voa. Esse é meu mais novo projeto: voar. Minha janela se debruça sobre a cidade, onze andares acima do burburinho dos carros, dos prédios, das árvores com aves canoras como o sabiá, e alçar voo vai me permitir uma linha reta até uma laranjeira mais próxima pra o início do meu concerto.
Uma pequena questão técnica se apresenta: tenho asas? Não que sejam visíveis, mas sim, tenho as asas da imaginação. Posso voar com elas melhor do que os sabiás que cantam. Pra isso preciso das janelas abertas e de um domingo pra sentir o vento nos cabelos. Voar sem o vento nos cabelos é um problema, então, até hoje mantive as asas recolhidas. Todo domingo eu abro a janela e recolho as minhas asas, com medo de me perder no canto do sabiá e não acertar com a laranjeira.
Mas hoje, exatamente hoje, vou abrir as minhas asas, mergulhar sobre o mundo e cantar como um sabiá. Porque é domingo  e é dia de cantar mesmo que seja em outra freguesia. Mesmo que me achem louca.
Passarinhos são assim, inconstantes, meio descompromissados. Não se sentem responsáveis pelo fascínio que exercem sobre mim. Meu desajeito não os comove. E se minha penugem colorida teima em não nascer, fato que me desgosta, eles não tomam conhecimento. Nem parecem notar. Mas eu creio, com uma fé sólida, sem questionamentos que me transformarei num sabiá  muito em breve, que voarei por sobre as minhas angústias e dores e que, no galho da laranjeira, terei à minha disposição, a liberdade e um mundo aos meus pés.
Que me considerem doida ou santa não faz a mínima diferença. Afinal “de que modo vou abrir a janela se não for doida? Como a fecharei se não for santa?”  **

·                        *   Emily Dickinson
** Adélia Prado





Maria Solange Amado Ladeira        30/08/2016
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