Postado em 04/05/2016
A prova
Solange Amado
Fim do semestre. Prova na Faculdade. Naquele tempo, havia
essa coisa esquisita: os alunos escreviam. E tinham de usar todas as letras que
a palavra comportava. Nada de bjs, msg, fds ou coisas que tais.
“Façam um texto de uma lauda explicando o que é a rebimboca
da parafuseta”. A jovem bateu o olho e entrou em pânico. Deu o maior branco.
Pronto! O professor pirou de vez, se já não era o suficiente. Nunca tinha
ouvido falar em parafuseta, muito menos em rebimboca, que, ao que parece,
ajudava a compor a parafuseta. Desastre total. Passou um bilhete pedindo
socorro ao colega da direita, que era, na verdade, meio de esquerda, além de
ser um forte levantador de copos. Ele sempre lhe pareceu um profundo conhecedor
de parafusetas políticas, e como a política sempre fora para ela uma caixa de
minhocas, o jeito seria mesmo pedir ajuda ao universitário em questão.
Não demorou muito e a resposta veio no verso do papel:
“enrolez, enrolez, toujours restera quelque chose”. A cara do professor era de
poucos amigos. A jovem duvidou que “enrolez” surtisse algum efeito, mas era
pegar ou largar. Se o estupro é inevitável... melhor botar a parafuseta do seu
cérebro pra funcionar.
De repente, oito andares abaixo, o som de botas no asfalto
surgiu do nada e foi aumentando a intensidade. O glorioso exército brasileiro
em mais uma batida na faculdade. Um batalhão armado até os dentes subia a rampa
em marcha acelerada, em busca de alguém ou de algo suspeito, de não sei o quê,
que poderia estar ameaçando a democracia, como era chamado o regime então
vigente nesse rincão varonil. Das janelas, a plateia irrompeu num coro de
imprecações, só ouvido até então por juízes de futebol. A jovem sentiu pena
daqueles meninos atordoados, metidos em uniformes quentes, subindo suarentos a
rampa, recebendo um parco soldo pra marchar em fila com um objetivo que não era
muito claro pra ninguém, muito menos pra eles. E lá vão eles, abrindo caminho
de cassetete em punho, golpeando esquerda e direita, a quem ousasse opor alguma
resistência a essa invasão intempestiva. Não era propriamente novidade. Quando
a paranoia dos militares supitava, eles faziam essas visitas cordiais à
universidade.
De lá de cima a moça viu quando um dos estudantes, seu
conhecido, num gesto infantil, intempestivo, impensado, cheio de bravata como
sói acontecer com os mais novos, esticou a perna na frente do comandante do
batalhão e o homem se estabacou de cara no asfalto. Não deu outra. De repente
esse gesto deu sentido ao que já suspeitavam: Aquela casa era um antro de
terroristas perigosos. E o terrorista em questão foi levado, preso, algemado,
torturado, e repetidamente interrogado: “confesse! Quem deu talidomida à mãe do
saci!?” Ele não sabia, mas desceu aos infernos por aquela rasteira fatídica.
Muitos e muitos anos depois, recebeu de indenização por tortura,30 mil reais.
30 dinheiros, como Judas, por sua traição.
Aproveitando o frisson que a visita inesperada provocou na
sala, o colega piscou para a jovem e cochichou: “se eles subirem até aqui e
cismarem que “rebimboca da parafuseta” é um código secreto pra derrubar o
governo, a gente tá lascado”.
Pois é. A jovem envelheceu. Os alunos não escrevem mais.
Lápis e canetas fazem parte do museu do ontem. Depois da geração da escrita, veio
a geração das cruzinhas. Voltamos à Ilha de Vera Cruz. Agora é a geração do
TOC. Além de Transtorno Obsessivo Compulsivo, TOC vem a ser golpear suavemente um botão em uma
superfície qualquer. Aí pode-se explodir o mundo, ou virá-lo do avesso, tanto
faz. É rápido. E limpo. E econômico.
E vocês vão concordar. Com as lições que estamos tendo dos
nossos representantes em Brasília, a jovem tiraria dez com louvor no seu texto,
mole, mole. A rebimboca da parafuseta ficou de uma transparência virginal,
clara como água, e bem brasileira. E nenhum país do mundo tem esse recurso.
No momento, está claro que precisamos trocar a parafuseta. O
problema está sendo achar uma rebimboca que se ajuste legal. E há suspeita de
superfaturamento na compra dessa peça. No mais, a zika anda tirando o sono de
muita gente.
Maria Solange Amado Ladeira 02/05/2016
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