Ser ou não ser


Postado em 24/03/2016
Ser ou não ser
Solange Amado
Tenho um certo escrúpulo em dizer a vocês que Papai Noel não existe. Mesmo porque, eu não tenho esse direito. Só as criancinhas podem dizer que o rei está nu. Nós, adultos precisamos de historinhas pra boi dormir que nos distanciem do bicho papão do real. É isso.
Muita gente acha que o bicho papão não existe. Eu também tinha as minhas dúvidas. Quando pequena, todas as noites eu olhava embaixo da minha cama se havia algum bicho papão alí, passava a vassoura e nada. Certeza da ausência. Ledo engano, de noite ele cravava as garras em mim. A certeza nunca me protegeu.
Muitos anos depois, compreendi que o real é um bicho papão ectoplasma, algo ameaçador e sem forma, que paira à nossa volta, atento e expectante. Ao primeiro descuido, ele se materializa na nossa frente, pelado e barrigudo, ainda que estejamos num momento solene e casto da existência. Foi aí que eu parei de dar vassouradas debaixo da cama e passei a funcionar como Sherazade. Vou deixando que o Sultão-Vida me coma regularmente e vou lhe contando historinhas e cantando, na esperança de engambelar o lado cruel que habita o velho pilantra. Na esperança de atrasar o bote fatal. Haja tesão e criatividade pra alimentar o fogo de um velho tarado! Mas não me condenem. É o que me resta. E até que tenho me saído bem. Sofrivelmente bem.
Mas é justamente aí que a porca torce o rabo. Eu me viciei nessa coisa de Sherazade. Passei a acreditar em Papai Noel, na cegonha e mais atualmente, em saci Pererê, com uma perna só funcionando a contento. E pior, creio que vocês, supostamente amigos que me cercam, exercem uma péssima influencia sobre mim. Vão atiçando a brasa da Sherazade que me habita: “Vai, conta vai!”. Um dia o sultão se cansa e cráu em mim, de vez.
Acho que vocês deveriam se reunir e bolar um plano pra matar o velho e me libertar desse compromisso de Sísifo de produzir cada vez uma historinha diferente pra acalmar o tesão de um velho perverso. Talvez possam achar um jeito de engarrafar o ectoplasma do real. Que sei eu?
Não me levem a mal, mas já ando cansada de historinhas. Quero assumir que sou uma mula sem cabeça real, palpável; quero chegar aqui com um gorro vermelho e um saco cheio de brinquedos e talvez, pousar suavemente na horta de alguém com uma criancinha no bico; quero jogar as minhas tranças do alto do balcão pro George Clooney subir. Quero que todos os políticos desse país se transformem em Pinóquios de nariz comprido, sem metáforas, no durão, diante de seus eleitores; quero o bicho papão materializado na minha frente pra eu dizer poucas e boas pra ele. Quero ficar uma noite que seja sem ter de fazer sexo com o sultão-vida e ter de usar as palavras pra manter suas ameaças longe de mim, cujas, eu nem sei bem quais são. Quero não ser ambivalente, que se eu parar de acreditar em Papai Noel e ainda contar pra vocês, vamos deixar de ser crianças, nos tornaremos velhos caquéticos, vencidos, inúteis, sem sonhos, sem fantasia, sem colorido, sem esperanças.
Imperdoável. Sem chance. Um infanticídio, porque, como diz a metamorfose ambulante chamada Machado de Assis, “a esperança é a meninice do mundo”.
E sem metáforas, não tem lobo mau que aguente comer a vovozinha por tanto tempo!
17/03/2015
Maria Solange Amado Ladeira          www.versiprosear.blogspot.com.br



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