Postado em 03/02/2016
O pisca pisca da criação
Solange Amado
Ferreira
Gullar já disse: a vida só não basta. Na mosca, eu diria ao poeta. Fico
pensando, vai ver é isso, esse meu lado autista que incomoda meio mundo.
De repente, bate uma canseira de gente que não tem tamanho. O
desejo de jogar conversa fora vai atrofiando e vou me recolhendo, em plena luz
do dia, para o lusco fusco de mim mesma. Não estou mais inteira naquele salão.
Uma coceirinha de palavras desvia a minha atenção e se volta para o meu próprio
umbigo. Essa sopa de letrinhas, recém saída do fogo, queima o meu desejo de
troca, instala-se uma inabilidade social, de fazer inveja a um monge de pedra.
Insistente, a saudade de mim me golpeia com precisão milimétrica. Quero ouvir
aquele estranho diálogo de uma pessoa só. Quero escutar as palavras que se
insinuam sorrateiras pelo meu cérebro. Elas são exigentes, querem absoluta
atenção. Me pegam pela mão e me levam pra longe dali, mas é impossível arredar
pé. Meu corpo fica. Não tenho como transportá-lo. E eis. Instala-se uma
esquize: estou e não estou ali, e esse pisca pisca de presença- ausência vai
desenhando um texto bem distante do contexto de que disponho. Nos intervalos
daquela tagarelice insossa, uma colcha de retalhos de palavras e frases vai
compondo meu texto. Não baixou nenhum santo. Não entrei em transe. Nem é
viável, com tanto transeunte nas imediações. Tenho de segurar a onda ou essa
esquize se torna uma levitação. A gente perde o pé. Há que se segurar firme na
conversa mole lá de fora pra não levantar voo na conversa exigente cá de
dentro.
Escritores não devem levitar, mas também não devem evitar
sair dos eixos no seu texto. Enquanto lá fora um milhão de normas vai castrando
a minha espontaneidade com incansável e contínua perversão; cá dentro, eu posso
fazer uma farra de non sense, de piração, ou quem sabe, ir pelo caminho
contrário, no manjadissimo “the book is on the table”, ou quem sabe “eu me
chamo Lili”. É só escolher.
Se lá fora, como diz o velho Freud, o “rochedo da castração”
não me deixa levantar voos para além do horizonte da vida, se as normas sociais
me amarram nos pés da mesa da sala, minha conversa interior ultrapassa
resolutamente o politicamente correto.
É isso aí: esquisita, esquizoide, autista. Eu aceito, boto a
minha viola no saco. Me curvo às sábias conclusões da cultura. Fico aqui. Me
recolho à minha insigne ficância. Mas eu me vingo. Qualquer diz, meu texto vai
entrar pelado na Igreja ao som da Marcha Nupcial. E vai ser lindo. Duvidam?
Maria Solange Amado Ladeira –
03/11/12

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