Postado em 15/03/2016
É ou não é?
Solange Amado
Belo domingo de sol. Lagoa da Pampulha rebrilhando na modorra
da manhã. A família, mulher, filhos, cunhados, sobrinhos pequenos, cachorro,
papagaio e as tralhas costumeiras saem para um dia de muita piscina e cerveja.
Alguém ia fazer uma lasanha especial e a lembrança dos dotes culinários do
anfitrião provoca um frisson de saliva na boca dos convidados.
Os carros passam pelo jardim bem cuidado, muros altos e
protetores. O caseiro os recebe e o portão se fecha. A prosa amiga, a água
fria, o sol quente e os gritos das crianças ecoam pela sala. A lasanha é
servida. Uma pausa para a degustação.
Meu irmão mergulha o garfo na sua porção, leva aos lábios, e
o prazer se espalha pelas suas papilas gustativas. Exatamente nesse momento,
cinco homens armados até os dentes, invadem a casa. Seguem-se quatro horas de
puro terror. Amarrados, sob a mira de revólveres, gritos, ameaças de estupro,
socos e pontapés, que sobraram até para o caseiro que, supostamente tinha a
chave do cofre. Casa saqueada, carros roubados e milagrosamente, todos saem
sem grandes danos físicos. E pronto
acabou. Depois é se haver com polícia, repórteres, fotógrafos e... as marcas;
depois é correr atrás do prejuízo. Durante muito tempo, meu irmão não conseguia
se sentar à mesa, apreciar um bom almoço. O gosto bom da comida ficou atrelado
às cenas de horror que viveu. Muitas vezes o vi abandonar a mesa em pânico. As
refeições tornaram-se momentos de angústia e conflito.
Tenho 5 anos, estou brincando com minhas bonecas no meio da
nossa grande cozinha, a panela de pressão chia sobre o fogo, um barulho
familiar nas minhas tardes de infância. Subito, um estrondo! A panela explode. A tampa sobe, bate no teto deixando uma
enorme mancha de feijão e cai ao meu lado. Me safo da guilhotina por um triz. Muitos
e muitos anos depois, o shshshshsh da panela de pressão me causa absoluto
terror. Não tenho nenhuma em casa, me livrei de todas. A marca.
Ainda tenho 5 anos. São 3 horas da tarde. Estou na
casa da minha avó. A mesa é posta. Minha tia moi o café. O cheiro se espalha pela casa e se gruda à minha
memória. Até hoje, esse cheiro faz um percurso de volta à casa de vó,
ternura, aconchego, prazer. A marca.
Mas essas são marcas óbvias. As marcas têm cores, sons,
cheiros, sabores, estão carregadas de emoções – horror, prazer, dor, alegria,
paz, ternura. O nó é que na maioria das vezes, essas trilhas se bifurcam num
emaranhado de caminhos. Impossível dizer o que ou quem produziu determinada
marca. São tantas cicatrizes, são tantas tatuagens que a gente se perde
frequentemente nesses caminhos.
Chopin me traz minha mãe ao piano, a segurança do meu
esconderijo embaixo da mesa da sala. Não há violência, ameaças, angústias que
resistam a Frédéric Chopin. E acrescento que não servem Beethoven, Rachmaninof,
Bach, Mozart, que ela também tocava. As trilhas, as teias levam a Chopin. Em
que momento Chopin se grudou à minha sensação de bem estar? Por que Chopin?
Jamais vou saber. E importa?
O que importa de fato, é que o gosto de uma lasanha, jamais é
só isso, o cheiro do café não é simplesmente o cheiro do café, e um Noturno de
Chopin é muito mais do que isso. Oscar Wilde teve um momento de absoluta
lucidez quando disse: “Vocês sustentam que homem é homem e mulher é mulher. Eu
sustento que nada é simplesmente o que é, e o ponto em que isso acontece se
chama morte.”
É ou não é?
Maria Solange Amado Ladeira 14/05/13
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