De Romeus e Julietas


Postado em 21/03/2016
De Romeus e Julietas
Solange Amado
Uma história que dá certo é a de Romeu e Julieta. Não. Não estou falando na lacrimosa tragédia shakespeareana. Se bem que eu acho que ela deu muito certo. Shakespeare foi inteligente o bastante pra botar um ponto final enquanto a paixonite ainda estava pegando fogo. Morreu de morte matada. Mais um tempinho e morria de morte morrida. Minha história acontece na baixada fluminense, que não é propriamente Verona. Vejamos. Ele é Romeu, ela é Julieta, e ninguém aqui é Montecchio ou Capuleto, mas o sobrenome não importa. Moram num barraco, cuja única semelhança com o cenário shakespeareano é um balcão, verdade que mais torto do que a Torre de Pisa. Caramanchão não tem, se bem que com o esgoto a céu aberto passando ao lado e desabando com força embaixo do morro, tem adubo de sobra para um jardim luxuriante de flores, anemia, febre tifoide, vermes, ratos, bichos e bichas de todas as espécies. Nada disso parece alimentar o amor e as preocupações desse Romeu e dessa Julieta tupininquins. O alimento diário dessa paixão verde- amarela é a alienação. E podia ser de outra forma, dirão vocês? Paixão rima com alienação. Elementar pra qualquer cérebro de ameba. Tá. Então vamos deixar a paixão de lado, vamos falar em vida. Paixão é só o intervalo entre as dores. Questionamentos não fazem parte daquele pedacinho alienado do mundo. Romeu e Julieta são supostamente felizes. Não que a alienação em si faça alguém feliz, digamos que a alienação é econômica, defende o cristão da trabalheira da indignação, do incômodo, da implicação na mudança. Saber é um compromisso. Uma vez o vermezinho da curiosidade e do conhecimento penetra no nosso organismo. Pronto. Dá o inchaço de barriga d’água e a criatura tá perdida, foi possuída pelo bicho carpinteiro da inquietação e do não conformismo. Mas nosso Romeu e nossa Julieta estão protegidos. Mergulham na novela das 9 e no pagode das 8 e se alimentam da telinha e da sopa de letrinhas anestésica e pseudoerótica dos plim plins da vida, para se protegerem de qualquer inconformismo.  Pagode é a serenata da alienação. O tum tum imbecilizante é garantia certa da modorra da aceitação do mesmo. E essa droga é injetada diretamente na veia do nosso casal pelo menos três vezes por semana. Nada de doses homeopáticas. É superdosagem de droga pesada. Romeu e Julieta pagodeiam sempre que alguma curiosidade ameça o status quo dos seus neurônios. Felicidade não dá nenhum trabalho. Felicidade delivery é tudo o que os Romeus e Julietas da nossa história procuram. Uma pizza feliz. Metade ignorância, metade alienação. Pra comemorar a mesmice. Mas nossa história é sobre um casal que dá certo, num país que dá certo, sobre vidas que dão certo. Consta que esse país até teve um presidente feliz, que falava, mas não via, não ouvia e não sabia de nada que possa complicar essa história. E nosso casal sensual, habitante desse país feliz também não quer saber  de nada que lhe cause incômodo  e comprometa a sua política de “deixar ficar pra ver como é que fica”.
                     Aqui eu entro num beco sem saída: penso que basta uma criatura respirar, enxergar e sentir para que as coisas não deem muito certo. Simples assim. Não se pode ser feliz existindo. “l’enfer ne c’est pas les autres”, sinto muito contrariar Sartre, “l’enfer c’est la vie”, que nunca é “en rose”. Mesmo que trocentos cantores diferentes espalhados pelo mundo cantem que a vida é “en rose”, isso não quer dizer que seja verdade. Ela ESTÁ rose em alguns momentos, marrom em outros, e pretíssima na maioria do tempo. Mas nosso casal é odara. Eles não sabem que a vida pode ir além da novela das 9. Se soubessem, eu tinha de abandonar o meu Romeu e minha Julieta à própria sorte e, lembrem-se, minha tarefa e fazê-los dar certo. Então, por favor, não contem a ninguém, muito menos a eles, que o rei está nu, e se tiverem juízo e quiserem ser solidários, olhem para outro lado. Só assim minha história tem chance de dar certo.           

Maria Solange Amado Ladeira  – 18/09/12

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