Solange Amado
Ela se chamava Vivalda. Era magrinha e esperta, mas comia mais do que uma broca.
Seu apetite dava um prejuízo enorme à família. Tinha acesso livre à biblioteca
do meu pai. Nós, seus filhos, ao contrário, tínhamos de enfrentar uma série de
restrições para entrar naquele paraíso, daí a implicância que tínhamos com ela.
Inveja pura e simples por aquele incomensurável privilégio.
Eu imaginava que ela devia ter uma cultura muito além da
Taprobana ou além do fundo do quintal, que era a maior distancia que eu
conseguia calcular naquela época. Eu nem sabia ler. Ocasionalmente, tinha
permissão pra olhar as figuras do “Mundo Pitoresco” e coisas que tais. Vivalda,
ao contrário, passeava com desenvoltura pelos calhamaços que cobriam do chão ao
teto aquele salão. Paixão é pouco. Era fanática. Fanatismo tipo Estado
Islâmico. Devorava livros. Sofria de uma espécie de colaxelagnia. E como sei
que essa palavra exige uma parágrafo à parte, vamos a ele.
Não se preocupem. Eu também me boquiabri quando me deparei
com essa tal de colaxelagnia não faz muito tempo. Explico: Conheci uma pessoa
muito interessante que me deu de presente um tijolaço de 500 folhas “tudo de
bom”, com a recomendação de que atravessasse aquele Rubicão de leitura
imperdível, bastante atenta. Eu devia ter desconfiado. Pessoas interessantes me
dão muito medo. Nunca se sabe o que vai sair daquela cachola. E atualmente, não
ando com vontade de desbravar as esquinas do mundo. Me contento com a minha
esquina familiar, doméstica, sem grandes novidades, porque o pertinho me dá a
maior sensação de conforto. Não obstante, aceitei o desafio de achar o caminho
das pedras. As primeiras 250 páginas atravessei porque ainda acreditava na
personalidade interessante do meu amigo. E se ele dizia que era imperdível,
quem sou eu, primo, pra discordar. Respeito a Santa Madre Igreja dos
intelectuais, e seu nihil obstat. As outras 250 páginas, eu nem sei direito:
sentimento de culpa, autoflagelação, ódio reprimido, noia di vivere ou inveja
do tênis. O fato é que, pedindo licença ao Agripino Grieco, quando acabei de
ler, eu podia fazer um exame de sangue, porque estava em perfeito jejum. Não
houve nenhum bradisismo nas circunvoluções do meu cérebro. Exceto por essa
palavrinha infame, insuspeitada: colaxelagnia. Tropecei nela. 500 folhas pra
atravessar e empaquei na colaxelagnia, que quer dizer, acreditem se quiserem,
“impulso de morder carinhosamente as pessoas”. No caso da Vivalda, os livros.
Em princípio, pensei que fosse uma tara, alguma perversão do apetite. Mas havia
o adjetivo “carinhoso”. Aí ficou mais pras preliminares do sexo. Furunfar com
colaxelagnia tem muito mais molho. É ou não é?
Então, voltando à Vivalda, ela comia carinhosamente: um dia,
Machado de Assis, outro dia, Jorge Amado. Comeu “Crime e Castigo”, “Os Irmãos
Karamazov”, “Guerra e Paz”. Na maioria dos casos, tinha bom gosto. Em alguns
casos, só tendo muito estômago pra digerir. Acabou comendo um Código de
Processo Civil. Aquele tijolaço vivia do lado esquerdo do peito do meu pai. E
aí, a traça caiu em desgraça. Porque, quase me esqueci de dizer, Vivalda era
uma traça.
Enquanto traçou alguns calhamaços da velha safra, escapou
impune; quando se atreveu a botar em prática a sua colaxelagnice em cima dos
livros jurídicos, deu com os burros n’água. Guerra declarada. Exército
posicionado e uso de armas químicas. Não houve jeito. Vivalda bateu as botas.
A bem da verdade, não achei muito justo. Primeiro, o uso de
armas químicas, segundo, não terem deixado as regras claras desde o primeiro
momento. Deram-lhe muito espaço. E mais,
quando meu sobrinho, com dois anos, começou a roer os livros do pai, a reação
da família foi imediata. Entraram em cena médicos, psicólogos, pedagogos. Não
pode. Nem carinhosamente. E nem precisava tanta parafernália. Hoje ele detesta
livros. Mas ninguém cogitou de usar armas químicas.
Pra mim, Vivalda era uma intelectual da melhor estirpe, e
como toda intelectual que se preze, não tinha lá grandes ambições de juntar
bens. Vivia sua vidinha humilde, dentro daquelas quatro paredes, se alimentando
de boas leituras.
Na verdade, só pecou por um detalhe: a falta de critério em
escolher as suas leituras. Isso a matou. Vai daí que, de ora em diante, quando
me indicarem calhamaços imperdíveis, já estabeleci um limite: vou até à página
50. Se até aí não der caldo, vou cantar noutra freguesia. Reservo a minha
colaxelagnia para alguns bebês rechonchudos da família, que uma leve tara é até
recomendável nesse mundo troncho.
Maria Solange Amado Ladeira
01/11/15
www.versiprosear.blogspot.com.br
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