LIRISMOS
Solange Amado
Não me lembro mais, mas o compositor deve ter sido Beethoven,
o mais irritadiço. Assediado por um candidato a compositor, que lhe solicitava
examinar uma de suas composições, Beethoven olhou atentamente a partitura que
lhe era estendida, e de repente, diante dos olhos ansiosos do jovem, o músico
gritou: “Fogo!” Espantado, o rapaz balbuciou: “o senhor está dizendo para eu
botar mais fogo na minha música?” Beethoven replicou secamente: “Não! Bote a
música no fogo”.
Dias desses, guardadas as devidas proporções, que anos luz de
distância me separam do talento do grande mestre, vivi uma experiência
parecida. Ao saber que frequento uma oficina de redação criativa, uma pessoa
achou que, ipso facto, eu devia ser especialista em literatura ou coisa que o
valha, e me solicitou um parecer sobre alguns poemas da sua lavra. Uma saia justissima,
diga-se de passagem. Mas como o mal estar era inevitável, peguei o calhamaço,
já pensando em como poderia escorregar daquela tarefa ingrata. Foi aí que a
autora dos escritos me informou: “são poemas MUITO líricos”. Confesso que o
advérbio de intensidade acendeu em mim algumas luzes de alarme, como se alguém
me oferecesse uma sobremesa e avisasse: “está MUITO doce”. Daí, achei por bem, antes de comer esse “MUITO
doce” andar caçando daqui e dali o que vem a ser lirismo. A primeira mordida
nessas doces informações não me levaram a lugar nenhum: “o lirismo se
caracteriza pela subjetividade, extravasar emoções e sentimentos pela expressão
verbal, rítmica e melodiosa.” Na idade média, tais poemas era ao som de uma
lira. Definitivamente, não me ajudou em nada.
Parto para os poemas. Leio o primeiro, e confesso que se
fosse Beethoven também gritaria :”Fogo!” Açucar demais. Seria o lirismo assim
enjoativo? Fico mais perdida do que cego em tiroteio e resolvo ler alguns
poemas líricos de grandes mestres, e um pouco de luz vai entrando na minha
cachola, e só então, começo a fazer as
pazes com o lirismo. Aprendi o quanto é perigoso o lirismo borderline. Fácil
atravessar a fronteira do exagero. E extravasar emoções de maneira firme,
forte, ao mesmo tempo sutil e delicada, é arte para poucos, não há nada mais
irritante do que o lirismo dramalhão pegajoso, ou (concordo com Bandeira), o lirismo
funcionário público, medíocre, arrumadinho. O molho de qualquer poema, eu
diria, de qualquer arte, está na marginalidade, está no algo que sai do comum, no
algo que surpreende sem apelação. O real nos atravessa a todo momento, se
enrosca em nós, nos fere, mas não precisamos apresentá-lo em toda a sua feiura.
As roupagens somos nós que escolhemos. E sem regras tacanhas. É o próprio poema
que esconde a melodia da lira, já traz em si a música. Como em Drummond, que
pode dizer algo forte, real, frustrante, e mesmo assim, conseguir ser, aí sim,
lírico:
“Não recomponhas
Tua sepultada infância.
Não osciles entre o espelho e a
Memória em dissipação.
Que se dissipou, não era possível
Que se partiu, cristal não era.”
Maria
Solange Amado Ladeira –27/11/12
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