Bengaladas
Solange Amado
À minha frente, o velhinho subia a
rua com dificuldade. Não mão esquerda trazia uma bengala, na qual se apoiava
enquanto arrastava penosamente o lado direito do corpo. Sem espaço para
ultrapassá-lo, eu seguia atrás, tentando ser paciente com a lentidão dos seus
movimentos. Na verdade, lá bem dentro de mim, eu transbordava de simpatia por
aquele velhinho na sua tentativa de vencer aquela subida sozinho. E refreava o
meu desejo de ajudar. Mas lá fomos nós subindo como dois bois de canga. No meio
do caminho topamos com um morador de rua que dormia no canto da calçada, cabeça
totalmente coberta, encolhido, pra caber dentro de um cobertor peleja. Parecia
dormir profundamente.
Foi então que o doce velhinho teve um
gesto inusitado. Mal se aguentando em pé, levantou a bengala e zap! Foi uma
bengalada e tanto. Do embrulho no chão pulou um cara num grito de guerra
furioso. Com sangue nos olhos, a vítima não sabia se avançava em mim ou naquele
velho frágil. Corri um enorme perigo. Foi então que o velho começou a se
sacudir com gargalhadas perversas. Colhia um enorme prazer naquele seu gesto
sem sentido.
Não soubemos como reagir. Nem eu, nem
o cavalheiro que recebeu a bengalada.
Por que e como, um doce e inofensivo
velhinho manquitola se transformou sem mais aquela em um agressor perigoso?
Por que? Boa pergunta. Por que alguém
cutuca alguém gratuitamente com vara curta? Por que as coisas absurdas? Num
livro que acabo de ler, percebo que num simples confronto de egos entre Stalin
e Hitler morreram milhões de pessoas inocentes no cerco a Stalingrado,
submetidas a torturas inomináveis. Como?
Por que?
Por que essa coisa de vaidade, de
ciúme, de preconceito, de inveja, de ódio? A resposta é óbvia. Todo mundo sabe.
Porque somos humanos. Mas o interessante é que acreditamos estar acima dos
animais irracionais porque vivemos acima do nível dos instintos. Podemos
controlar as emoções. Certo? Errado. Mas tudo bem, podemos pensar assim e
estamos perdoados. É pura ingenuidade. E ingenuidade pode ser um defeito, mas
não é um pecado.
O buraco é mais embaixo: o problema
está na alienação. Vivemos alienadinhos de nós mesmos. Como bons mineiros,
vamos indagando oncotô, proncovô, quecosô – síndrome do Brasil atual – certos
de que podemos saber direitinho o caminho de casa. Não podemos.
Na verdade, a história do velhinho
não está aqui por acaso. Em geral, quem pensa que tá tudo dominado, é apenas um
velhinho dando bengaladas de non sense. O caldeirão de impulsos impensáveis que
nos habita,nós o desconhecemos, não somos donos dele. Não somos donos de nossas
emoções. Mas somos donos da atuação delas. Só podemos conter a bengalada, não o
impulso de meter a bengala no crânio de alguém cretino (ou não) que atrevesse o
nosso caminho.
E tem mais. Pra ser honesta, pela
vida afora já dei bengaladas com fartura. Mas não tenho culpa. Minhas pulsões
pegam pesado. Elas me provocam o tempo todo. Mas vou ser honesta. Justiça seja
feita. Em matéria de pulsões à solta, o velhinho sádico ganha de mim. Minhas
bengaladas nunca chegaram a tanto. Talvez porque são palavras e batem na folha.
São leves, mas às vezes machucam muito mais!
Maria Solange Amado Ladeira 02/06/2015
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