As palavras, essas estrangeiras
Solange Amado
Foi ainda no
tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.
Parecia um coqueiro, magro, careca como uma bola de gude,
muito alto (por volta de 1,90m), e muito escocês, inclusive no dialeto
indecifrável, quando queria que sua conversa não fosse entendida por mim, sua
namorada.
Desembarcou aqui com uma vontade ferrenha de decifrar esse
país e esse povo meio selvagem, meio over, um tanto irresponsável, cujo senso
de humor era difícil de entender, só digerível em “doses homeopáticas”, como
dizia.
Sua primeira experiência com o senso de humor do brasileiro
não foi nada homeopática. Ao se interessar por uma mulher, pediu ajuda aos seus
companheiros no serviço para se sair bem no seu primeiro encontro. Eles, é claro,
foram solidários e deram todas as dicas.
E quando a moça abriu a porta da casa, ele a saudou alegremente como tinham
ensinado: “Oi puta!” Recebeu um tapa e uma porta na cara e além da marca vermelha
e do vexame, ficou marcado pela eterna suspeita de que o brasileiro é menos
confiável do que bumbum de bebê.
Não desanimou, porém, resolveu que se dominasse bem a língua
portuguesa, nunca mais comeria gato por lebre. Com tremenda dificuldade,
decorava verbos, aprendia palavras e prestava enorme atenção ao que os outros
falavam. Mas não contava com o mineirês dos peões da obra na qual trabalhava.
Um dia, eu lhe perguntei quais palavras havia aprendido com eles, naquele dia.
E ele todo entusiasmado: “pinga, muié e rango”. Aprendizado com os melhores
professores, e lá ia ele tropeçando nas palavras e tentando usá-las nas
ocasiões em que achava que elas serviriam. Por exemplo, num restaurante
sofisticado ele podia pedir um “rango”, ou perguntar a uma amiga se ela era
“muié” do fulano, muito alegre por ter se expressado num bom português.
Certa vez, encontramos na rua com um amigo meu que é gay.
Conversamos animadamente por algum tempo. Ao nos despedirmos, ele cochichou no
meu ouvido: “Eu sei, ele é “sês e meio”. Como eu não entendesse, ele mostrou
nos ponteiros do relógio: seis e meia. Seus amigos peões da obra haviam lhe
ensinado mais essa pérola.
Uma vez, brigamos feio porque no meu inocente mineirês, ao
mudar de uma mesa para outra, no restaurante, eu falei: “Ih! Bôbo, essa aqui ta
melhor!” Semana seguinte ele chegou uma arara e foi logo me dando uma
espinafrada: “Nunca mais me chame de “silly” diante dos outros. Como assim? Que
diabos ele estava dizendo? Silly é igual a idiota, estúpido, bôbo. Não era
assim que eu o chamava? Paguei caro por esse meu mineirês meio bôbo. Nunca
logrei explicar a diferença entre denotação e conotação. Em inglês as palavras
são responsáveis.
Mas a cereja do bolo veio num dia que embarcamos num ônibus e
uma senhora passou na roleta com um garotinho. A mulher tinha pressa em descer,
mas o garotinho ficou atrapalhado nas grades da roleta. E ela aflita o
apressava: “Vem cá, Zé”, “Vem cá, Zé” De repente ouvi alguém cochichando no meu
ouvido: “O que significa essa palavra “vencazé”? E eu: “não é uma palavra,
John, é uma frase: “come here, Joseph ou venha cá, José!”
Naquele dia ele quase pediu arrego, pegou o chapéu e deixou
de vez a lingua portuguesa. Uma língua em que uma palavra é uma frase, ou pode
significar o oposto do que preconiza o dicionário. Um língua composta de
palavras enganadoras, que pregam peças, que fazem engolir gato por lebre. Uma
língua que quando a gente embarca nela, mesmo com toda a cautela de fugir das
calmarias, ou de esbarrar no Cabo das Tormentas, acaba dando com os costados em
algo além, em terras desconhecidas. Talvez aí a gente descubra o Brasil.
Mas não era esse o objetivo?
Maria Solange Amado Ladeira
-
12/03/13
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