SER GAUCHE
Cabelos loiros, cacheados, vozinha macia, passos firmes, mas
delicados, tamanho P, manequim 40, olhos mornos e enlouquecedores às portas da
adolescência. O feminino desabrochando em toda a sua glória. Pai vigilante contra
possíveis gaviões que poderiam botar farofa nessa caminhada de menina a mulher.
Tudo conforme o figurino. Tudo, menos um detalhe: ela conheceu a bola. E se
apaixonou. Aliás apaixonaram-se uma pela outra. Sentimento mútuo.
No primeiro chute sentiu a maciez daquele objeto inquieto e
redondo como o mundo, sem cantinhos e mistérios, sem inquietações e feminismos
vãos. Era bom ter a sensação de dominar algo firme e dócil ao mesmo tempo.
Entre tantas angústias e inquietudes povoando as redondezas do planeta
adolescente, a bola era a sua certeza, seu porto seguro. Era onde se sentia
existir. Era onde se encontrava. E foi onde a família se perdeu.
Foi só anunciar seu desejo de se colocar a serviço da redonda
para todo o sempre, que um tsunami se abateu sobre a sua casa. Mãe, pai, avós,
e tios, toda a família cochichava pelos cantos, incapaz de olhar de frente
aquele “desvio de personalidade”. Lá se ia por água abaixo o sonho materno de
um baile de debutantes, com direito a vestido branco e fru frus. Enquanto a mãe
tentava manter de pé o dois pra lá dois pra cá da valsa de Strauss, ela
abraçava com força sua amiga bola e ia treinar – chuteira, calção, camisa
listrada do time, chuva, barro, sujeira, hematomas e felicidade batendo firme
no peito e brilhando nos olhos qual gotinhas de chuva.
O pai foi o primeiro a ceder. Jogou a toalha no ringue e até
patrocinou dois pares de uniformes completos, nocauteado pela força do desejo
da filha e comovido pelo seu sorriso.
Faltava atravessar o Rubicão do resto da família. A mãe era
dureza. Sabotava sistematicamente os treinos, escondia camisetas e calções,
fazia cenas, manipulava, dramatizava. Aquela criatura suada, fedida, cheia de
barro, distribuindo pontapés como um moleque de rua, não podia ser a menina
loirinha e delicada que embalou por tanto tempo quando bebê. Como é que uma
maldita bola pode botar a perder tantos anos de amorosos cuidados? Em que
momento, quando foi, que aquele anjinho loiro e encaracolado virou um anjo
torto? Quando é que sua linda criança, tão feminina, virou uma Maria Tomba Homem,
com um chute que derrubava qualquer marmanjo desavisado? De quem era a culpa?
Nada na família justificava esse acidente de percurso. E fazer o que?
Declarou guerra. As batalhas eram diárias, mas marido e filha
driblavam suas estratégias com um jogo de corpo de fazer inveja a qualquer
craque. Na pequena área do lar, a marcação era cerrada, mas o duo afinadíssimo
fazia um gol atrás do outro. Vinham ora pelas pontas, comendo pelas
beiradinhas, e de repente chutavam, ora era um gol por cobertura, ora um carrinho
corajoso que a deixavam lá estatelada sem argumento. Ia perdendo partida após
partida.
Quando deu por si, a dupla de atacantes tinha um time
familiar inteiro jogando junto, com direito a inúmeros reservas. Mas foi quando
um estádio inteiro explodiu em alucinada reverencia por aquela loirinha cheia
de cachos entrando com bola e tudo pelas redes é que ela assinou a rendição. Uma
enorme paz invadiu seu coração. E um orgulho enorme molhou seus olhos.
E finalmente compreendeu: Não tem jeito. Seu anjo loirinho
foi ser gauche na vida. E o orgulho brasileiro ainda vai passar por aquela
canhotinha. Quer apostar?
Maria Solange Amado Ladeira 20/06/14
lindo amiga! olha, mande o endereço do seu blog para Marcia Chagas ela é sua leitora.
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