O SUFOCO
Tudo transcorreu muito bem. Um sufoco aqui outro alí, uma saia justa inevitável, mas entre todas essas dores, foi só prazer. Semanas arrastando malas pra lá e pra cá, atravessando fronteiras, pagando mico no maior entusiasmo.
E aí, chega a hora do retorno. Lar doce lar. Mas antes de voltar pro meu Bodocó, há uma pedra no meio do caminho. Pedra não. Pedreira. A pirâmide do Egito. Tenho de revelar essa minha faceta vergonhosa. Eu sei que não é politicamente correto, coisa assim como não gostar de jazz. É um negócio que pega mal ter medo de avião. E é por isso que não tenho medo. Tenho pavor.
Antes de subir naquela coisa, vou pra frente do espelho e falo grosso comigo: “se liga garota, você é uma mulher ou um rato?” Confesso que nessa hora, começo a achar o rato um bichinho muito simpático. Paro na frente daquele pássaro monstruoso feito de aço e me sinto um molusco. Alea jacta est!
Até daria pra dar meia volta e disparar para a segurança do meu lar, mas a essa altura, me assalta uma espécie de transe. Penetro naquele pássaro gigante e uma vez lá, não dá para desembarcar nem que a minha poltrona comece a pegar fogo, tal o aconchego com que sou acolhida, a gente fica tão apertadinho uns nos outros, que não tem muito espaço pro medo. Nem pro espirro. Pra usar o banheiro, monta-se uma operação de guerra bem complicada: toda a fileira tem de se levantar e com passinhos de gueixa, todos têm de se movimentar em uníssono, de maneira bem harmoniosa, como um balé bem ensaiado. Calor humano total. Mas tudo melhora na hora do almoço. Sempre treino em casa cortar a carne com os talheres (de plástico), sem movimentar os braços, ou conseguir tomar o suco sem que nenhuma gota entorne no colo do vizinho.
Na verdade, se o avião se comportar bem, consigo sobreviver à viagem, sem muitos percalços, de vez que não há mesmo espaço para a minha síndrome do pânico aéreo. Seguro na mão de Deus e vou em frente. Quando menos espero, toda encarquilhada, como um imenso navio adernando, dou com os costados, seja lá onde for, Oropa, França ou Bahia. Estou salva.
Isso até a hora do retorno, quando a aventura se repete nos mesmos moldes, ou quase. Pois foi quando eu estava retornando incólume da minha última viagem é que o caldo engrossou.  Muitas horas dentro daquela lata de sardinha gigante, num pânico contido, e a voz do piloto diz que estamos sobrevoando BH. Suspiro de alívio. Terra à vista! Faltando só um pouquinho. Dou uma relaxada, respiro fundo e ouso olhar pela janela. Não vejo nada. Tudo cinza. Tento me acalmar. Se o piloto disse, convém acreditar. Agora é só botar no chão esse veículo e estamos conversados. Moleza!
De repente, a coisa deu um arranco e começou a tremelicar, não tanto quanto eu, diga-se de passagem, mas aquilo não prometia nada de bom. Tornamos a ouvir a voz do piloto. Sem visibilidade, vamos fazer o pouso por instrumentos. Devemos permanecer quietos, sentados e afivelados em nossos lugares. Como se a gente tivesse pra onde correr...  Nesse momento, vejo algumas garrafinhas d’água deslizando pelo corredor, meio sem rumo, numa dança frenética. Tudo começa a chacoalhar, fazendo coro com meu coração, que só queria saltar fora do peito e encontrar terra firme: Vera Cruz, Santa Cruz, Cabrália, qualquer lugar onde apear. Jesus! Sou uma mulher ou sou um rato? Naquele momento, não me importaria se eu fosse uma lesma gosmenta ou um tatu bola, desde que tivesse um chão embaixo dos meus pés. Rezo baixinho e prometo do fundo do meu coração que, se escapar dessa, vou virar praticamente uma Madre Tereza de Calcutá e devotar a minha vida aos pobres e desvalidos.
Foi nesse momento que o rapaz simpático e discreto da poltrona da frente resolveu sair do armário. Com gritinhos agudos ameaçava devolver o jantar insosso que havíamos degustado pouco antes. Péssima ideia. O alvo mais próximo dessa devolução seria eu. Se já era desagradável encarar a possibilidade de virar um cadáver nos próximos minutos, ainda por cima, seria um cadáver todo vomitado. Felizmente, o cara resolveu só desmaiar. De mão em mão, chegavam até o seu lugar, saquinhos para enjôo, garrafinhas de água e até um providencial vidrinho de álcool que bons samaritanos esfregavam nele, embora eu ache que é mais negócio morrer fora de si do que participar do processo.
Os minutos foram se escoando trepidantes, lá fora um cinza metálico ameaçador no ar. De repente...BUM! Batemos em alguma coisa. Fechei os olhos. Lá vou eu virar picadinho. Que assim seja! Então, o monstrengo parou. Aplausos e gritos de alívio. Essa foi por pouco!
O problema agora é que até hoje estou negociando essa história de Madre Tereza de Calcutá. Alguma sugestão?


Maria Solange Amado Ladeira                       09/09/14




Nenhum comentário:

Postar um comentário