MARGARIDA
Margarida era de uma docilidade estranha. Uma delicadeza
rude. Seca como um graveto. Definitivamente, Margarida não era cor de rosa, nem
branca, nem macia. Uma negra com a consistência da vida. A perturbadora mistura
do amargo e do doce que a vida nos oferece. Mas era assim. E eu gostava dela.
Tinha braços fortes e a voz firme. Ásperos às vezes. Mas quando noites
seguidas, eu acordava aos gritos, emaranhada nos meus terrores noturnos, eram
seus braços que se estendiam como uma
árvore frondosa e sólida que nos acolhe e abraça forte. Era alí, no seu regaço
que eu encontrava a paz. Ela dava um chute legal nos meus medos.
Margarida era o gigante que me protegia do mundo e dos
monstros que povoavam as noites. Era eterna, sólida, incansável. Pelo menos
assim parecia aos meus olhos infantis. Sempre estava alí para o que desse e
viesse: quando eu esfolava os joelhos, quando as chineladas do meu pai doíam no
lombo, quando os fantasmas apareciam no fundo do quintal. E estava lá nos
momentos felizes também, pronta a rir e a se alegrar comigo.
Quando comecei a me apaixonar pelas palavras na escola,
chegava em casa com um “muito bom” sapecado em cima da minha redação, e
invariavelmente um “muito ruim” sapecado em cima do meu exercício de
matemática. O “muito bom” da redação não
dava o mínimo ibope em casa, mas o “muito ruim” da matemática liderava as
paradas de sucesso por pelo menos um mês (até ser substituído por outro), e me
rendiam dez mandamentos de proibições. “Não irás ao cinema no domingo” era o
primeiro e o preferido dos meus pais, seguiam-se outros, que eu tinha de
cumprir à risca. Não havia perdão. O “muito bom” desaparecia legal diante da
tragédia “muito ruim” dos números. E era aí que Margarida entrava, dando um up
grade na minha auto estima, exatamente alí, na zona do agrião, onde minha fé no
meu próprio taco sofria um colapso de morte. Ela me pegava pela mão, saiamos às
compras: padaria, mercado, açougue, toda a vizinhança se inteirava,
através das suas informações, da minha
genialidade escolar, com o fracasso dos
números devidamente escamoteado, é claro. Meu ego saia sempre recomposto desses
passeios.
Margarida não sabia ler ou escrever. Era o faz tudo da minha
família: babá, cozinheira, lavadeira, passadeira em uma casa povoada de
crianças. Não sabia nem o que era uma redação ou um exercício de matemática. Ou
o que significaria o êxito ou o fracasso nesses quesitos. Isso pouco importava.
O que saltava aos olhos, era sua habilidade natural, a delicadeza, a gentileza
com que segurava a barra de uma criança, no momento em que esta se sentia
jogada pras traças.
O tempo passou. A criança que existe em mim não tem mais o
sustentáculo dos braços fortes das muitas margaridas espalhadas por esse país.
Mas ainda as procuro quando o boletim da vida vem salpicado de vermelho e todos
começam a me olhar torto.
Quando minha auto estima vacila, quando o “muito bom” sai de
cena, perde a força e começa a se apagar, e o ponto focal de todos os que me
rodeiam se fixa no “muito ruim”. Quando começo a descer a ladeira da minha auto
confiança, farejo no ar o cheiro de uma flor, meio rude, meio roceira. E aí,
pego a mão da Margarida e damos uma volta no quarteirão, peito estufado de
orgulho, ouvindo vozes ao meu redor e
comentários cheios de aprovação; minhas mãozinhas infantis fortemente
entrelaçadas com suas mãos negras e fortes. “Muito bom”, vejo seus lábios
formarem. E sorrio.
Maria Solange Amado Ladeira - 22/04/14
Nenhum comentário:
Postar um comentário