Ontem resolvi ir ao shopping comprar uma vaca. Calma! Já sei
o que estão pensando. Não se trata ainda de miolo mole ou caduquice. Sei muito
bem que pra comprar um boi, ou a mulher dele, a vaca, melhor me dirigir a uma
exposição de gado, onde vou ser muito mais bem servida. Então, não comecem a me
dirigir olhares suspeitosos. Aliás, vou deixar vocês com suas suspeitas
infundadas, que a vaca é minha e eu vou comprar onde me der na telha. O que
está em jogo aqui é outra coisa.
Dizem que Sócrates, o filósofo, rei da frugalidade, gostava
de frequentar a rua do comércio, em Atenas, sempre movimentada, com a multidão
comprando de tudo. Certa vez, um de seus alunos o encontra por lá e se espanta:
“Mestre, que surpresa! O que veio fazer por aqui?” Sócrates dá uma olhada em
volta e responde: “gosto de vir aqui pra saber quantas coisas existem no mundo
que eu não preciso para ser feliz”.
É claro. Não sou Sócrates. Às vezes preciso de uma vaca para
ser feliz. Não obstante, me sinto como Sócrates ao adentrar um shopping na
época de Natal. As pessoas dão volta pelos corredores, como moscas em torno da
luz. Listas nas mãos, enormes pacotes, as vitrines iluminadas, a música e o
frenesi natalino tomam conta dos fregueses-moscas e os atraem para dentro das
lojas, onde seus cartões de crédito são engolidos pelas maquinetas e eles vão
atrás, engolidos pelo dragão da dívida. Depois do novembro azul e do dezembro
dourado, tem o janeiro no vermelho. E aí a vaca vai pro brejo. Quero dizer, a
vaca lá deles, a minha nunca foi pro brejo.
Duvido que a rua do comércio, em Atenas, lançasse mão de
jogadas de marketing tão ousadas, propaganda subliminar, jogo de luzes e cores
e métodos tão agressivos para enroscar os consumidores em suas teias, como na
era pós moderna. Fico observando com que mansidão as vacas vão indo pro brejo
do consumismo desenfreado.
Já deixei claro que não sou Sócrates. Em geral compro mais do
que deveria. O mosquito do “espírito natalino” me pica como a quase todos os
mortais. Mas eu ando tomando vacina de idoso contra gastança inútil. Quanto
mais velha fico, mais a vacina faz efeito. É. Meus janeiros estão indo do
vermelho para um leve rosado, fruto de uma frugalidade que eu desconhecia.
Sabedoria socrática?
E aí vou percorrendo corredores. Muitas lojas ostentando a
bandeira francesa e se vestindo de bleu, blanc et rouge, em homenagem aos
mortos do atentados em Paris. Ninguém quer abrir a ferida da lama que sufocou,
bem aqui, no nosso nariz, tantas vidas, tantos sonhos, tanta beleza nesse nosso
pedaço de chão. Lama não dá ibope, lama não vende. Ao contrário, lama lembra o
brejo que atola as vacas e os bois nesse frenesi de compras. Carece a anestesia
natalina e um jingle bell francês. Sem culpa.
Estou tão imersa nesse natal francês que ouço atrás de mim
uma senhora dizer à outra: “Papai Noel já está NOIR”. É assim que eu ouço: NOIR
– NEGRO. Procuro algum Papai Noel negro, mas o que eu vejo à frente é branco,
caucasiano, barbudo e gordo. A bem da verdade, nunca vi um Papai Noel negro.
Leva um tempo até eu perceber que ela disse na verdade, Papai Noel NO AR. Ah!
Bom!
Tenho vontade de me sentar no colo do bom velhinho e pedir
uma vaquinha nova. A minha tem necessidades especiais. É por isso que estou lá,
na rua do comércio. Por causa da minha vaca-cofrinho. Eu a vi na vitrine de uma
loja do outro lado do oceano. Me tomei de amores Uma vaquinha branca com o
úbere bem grande pra caber bastante moedinha. Não precisava, mas comprei.
Quis o destino que, na viagem de volta, ela perdesse um
chifre. E desde então, vive no meu banheiro, que é o meu jardim zoológico: tem
sapo, borboleta, passarinho, peixinho e uma vaca sem um chifre.
Vocês podem pensar o que quiserem de mim, mas a incompletude
da vaca me incomoda. Essa falta com a qual tenho de conviver diariamente me dá
uma gastura sem fim. É um buraco negro.
E aí eu recorro ao shopping natalino e encaro aquela febre de
compração compulsiva. Não sei se alguém alí tem uma vaca com um chifre só, mas
sei que alí, todos nós estamos irmanados na dor da incompletude.
24/11/15
Maria Solange Amado Ladeira
www.versiprosear.blogspot.com.br
Maria Solange Amado Ladeira
www.versiprosear.blogspot.com.br
Adorei ,Solange! Vc sempre atenta à vida e nos fazendo refletir sobre ela de modo doce e ético! Poético!? Muito bom visitar seu blog que já nasceu grande! Abraço.
ResponderExcluirGarota, a gente vai assim firme que nem prego no angu pela vida. Comprando vacas, dando nome aos bois. Bom saber que você vem dar uma espiadinha vez em quando. Muito me honra, obrigada!!
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