A Vaca


Maria Solange Amado Ladeira
Ontem resolvi ir ao shopping comprar uma vaca. Calma! Já sei o que estão pensando. Não se trata ainda de miolo mole ou caduquice. Sei muito bem que pra comprar um boi, ou a mulher dele, a vaca, melhor me dirigir a uma exposição de gado, onde vou ser muito mais bem servida. Então, não comecem a me dirigir olhares suspeitosos. Aliás, vou deixar vocês com suas suspeitas infundadas, que a vaca é minha e eu vou comprar onde me der na telha. O que está em jogo aqui é outra coisa.
Dizem que Sócrates, o filósofo, rei da frugalidade, gostava de frequentar a rua do comércio, em Atenas, sempre movimentada, com a multidão comprando de tudo. Certa vez, um de seus alunos o encontra por lá e se espanta: “Mestre, que surpresa! O que veio fazer por aqui?” Sócrates dá uma olhada em volta e responde: “gosto de vir aqui pra saber quantas coisas existem no mundo que eu não preciso para ser feliz”.
É claro. Não sou Sócrates. Às vezes preciso de uma vaca para ser feliz. Não obstante, me sinto como Sócrates ao adentrar um shopping na época de Natal. As pessoas dão volta pelos corredores, como moscas em torno da luz. Listas nas mãos, enormes pacotes, as vitrines iluminadas, a música e o frenesi natalino tomam conta dos fregueses-moscas e os atraem para dentro das lojas, onde seus cartões de crédito são engolidos pelas maquinetas e eles vão atrás, engolidos pelo dragão da dívida. Depois do novembro azul e do dezembro dourado, tem o janeiro no vermelho. E aí a vaca vai pro brejo. Quero dizer, a vaca lá deles, a minha nunca foi pro brejo.
Duvido que a rua do comércio, em Atenas, lançasse mão de jogadas de marketing tão ousadas, propaganda subliminar, jogo de luzes e cores e métodos tão agressivos para enroscar os consumidores em suas teias, como na era pós moderna. Fico observando com que mansidão as vacas vão indo pro brejo do consumismo desenfreado.
Já deixei claro que não sou Sócrates. Em geral compro mais do que deveria. O mosquito do “espírito natalino” me pica como a quase todos os mortais. Mas eu ando tomando vacina de idoso contra gastança inútil. Quanto mais velha fico, mais a vacina faz efeito. É. Meus janeiros estão indo do vermelho para um leve rosado, fruto de uma frugalidade que eu desconhecia. Sabedoria socrática?
E aí vou percorrendo corredores. Muitas lojas ostentando a bandeira francesa e se vestindo de bleu, blanc et rouge, em homenagem aos mortos do atentados em Paris. Ninguém quer abrir a ferida da lama que sufocou, bem aqui, no nosso nariz, tantas vidas, tantos sonhos, tanta beleza nesse nosso pedaço de chão. Lama não dá ibope, lama não vende. Ao contrário, lama lembra o brejo que atola as vacas e os bois nesse frenesi de compras. Carece a anestesia natalina e um jingle bell francês. Sem culpa.
Estou tão imersa nesse natal francês que ouço atrás de mim uma senhora dizer à outra: “Papai Noel já está NOIR”. É assim que eu ouço: NOIR – NEGRO. Procuro algum Papai Noel negro, mas o que eu vejo à frente é branco, caucasiano, barbudo e gordo. A bem da verdade, nunca vi um Papai Noel negro. Leva um tempo até eu perceber que ela disse na verdade, Papai Noel NO AR. Ah! Bom!
Tenho vontade de me sentar no colo do bom velhinho e pedir uma vaquinha nova. A minha tem necessidades especiais. É por isso que estou lá, na rua do comércio. Por causa da minha vaca-cofrinho. Eu a vi na vitrine de uma loja do outro lado do oceano. Me tomei de amores Uma vaquinha branca com o úbere bem grande pra caber bastante moedinha. Não precisava, mas comprei.
Quis o destino que, na viagem de volta, ela perdesse um chifre. E desde então, vive no meu banheiro, que é o meu jardim zoológico: tem sapo, borboleta, passarinho, peixinho e uma vaca sem um chifre.
Vocês podem pensar o que quiserem de mim, mas a incompletude da vaca me incomoda. Essa falta com a qual tenho de conviver diariamente me dá uma gastura sem fim. É um buraco negro.
E aí eu recorro ao shopping natalino e encaro aquela febre de compração compulsiva. Não sei se alguém alí tem uma vaca com um chifre só, mas sei que alí, todos nós estamos irmanados na dor da incompletude.



                                                          24/11/15
Maria Solange Amado Ladeira
www.versiprosear.blogspot.com.br

2 comentários:

  1. Adorei ,Solange! Vc sempre atenta à vida e nos fazendo refletir sobre ela de modo doce e ético! Poético!? Muito bom visitar seu blog que já nasceu grande! Abraço.

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    1. Garota, a gente vai assim firme que nem prego no angu pela vida. Comprando vacas, dando nome aos bois. Bom saber que você vem dar uma espiadinha vez em quando. Muito me honra, obrigada!!

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