Cantinho do Pensamento

 

Cantinho do pensamento

Solange Amado

 

30% do tempo ela fala toda sorte de palavrões, 20% ela fica deprimida pela chatice do mundo, 10% ela fica muito romântica, porque supostamente, todo mundo tem de ser romântico em algum momento e acreditar. Isso é o mais difícil. Os 40% restantes ela não sabe. E se diverte.

As três estavam conversando. Ela, uma amiga portuguesa e uma terceira que leva tudo ao pé da letra, mais no pé do que na letra. O tema era D. Maria I, a louca. A portuguesa contava sua visão portuguesa da d. Maria. Muito interessante. A outra amiga passava os olhos pelo restaurante, mais por fora da conversa do que dedão de Franciscano. De repente, pergunta: “Quem é essa Maria? Sua faxineira?” Não se sabe em qual porcentagem caberia essa observação. Ela fica entre os 30% e os 40% restantes, que é sua parte favorita. Escolhe se divertir.

A moça lhe telefona. Assim do nada. Aliás, faz isso volta e meia: “Meu Deus! Será que estou grávida?” A faxineira sempre diz que a gente pode abrir o computador e procurar tudo no “Guga”. Ele tem todas as respostas. Nesse caso é duvidoso. Mas sempre se pode tentar. A pergunta fica entre os 30% dos palavrões só porque interrompeu seu livro nas últimas páginas. E o assassino ia ser desmascarado. O bem sempre vence. Mas isso está nos 10% do romantismo. Fica confusa.

Ambos são bonitões. O cachorro e o jovem na porta da farmácia. O garoto lhe pede educadamente que lhe passe um PIX. “A senhora sabe, né? A Vida tá difícil e eu não estou dando conta de comprar ração pro meu cachorro”. Ela jura que isso atingiu os 100%.

Ela é uma loirinha miúda e angelical. Tem 6 anos. Seu esporte favorito é dedurar a irmãzinha Vic de 5, de cabelos e olhos pretinhos, cujo esporte preferido é fazer perguntas embaraçosas.

As duas estão brincando. De repente, a mais velha entra correndo no quarto onde o pai trabalha no computador: “”Papai, papai! A Vic falou palavrão!” O pai distraído pergunta: “Qual palavrão”? “Bunda” é a resposta.

Vamos e venhamos, não é nenhum palavrão cabeludo, quiçá, não é nem mesmo um palavrão, mas o pai ficaria desmoralizado se simplesmente deixasse essa falta grave passar batido. Resolve ter uma conversinha light com a caçula. “Vic! Vic! Venha cá!” Silêncio. “Viiiic!” De longe vem a resposta: “Não posso ir aí. Estou no cantinho do pensamento”. – “Uai! Sua mãe colocou você aí”? “Não. Eu vim sozinha, porque falei bunda”. O pai encerra a questão: “OK. Então, fique aí por um tempo pra pensar no que fez”.

O tempo vai passando. Reina a paz. Quase três horas depois, ouve-se uma vozinha chorosa do lado de fora da porta: “Papai? Posso sair agora do cantinho do pensamento?” 100% de fofura.

Não é por nada não. A velha senhora passa tardes inteiras no cantinho do pensamento refletindo sobre o mundo, os palavrões, a violência, a chatice, a falta de inspiração, a babaquice que assalta o país. E isso nunca resolveu nada. Bunda continua sendo o menor dos seus problemas.

Será que ela já pode sair do castigo?

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                   07/08/2022

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