Só uma crônica

 

Só uma crônica

Solange Amado

 

É só uma crônica. Moleza. Verdade que não tem nada acontecendo no mundo. Mas e daí? Machado de Assis já disse que tudo cabe dentro de uma crônica: sol, chuva, lua, preguinho na parede. Até a falta de assunto. E se ele falou, boralá, que ela obedece. Ela que é apenas uma mulher. Tudo o que o mestre mandar, a gente faz.

Fazia. Alguns anos depois, vem Zuenir Ventura palpitando: “nem tudo é cronicável”. Ela já devia saber que mais dia menos dia, alguém ia palpitar. Faz parte. Ela estava lá sossegada, tirando leitinho de pedra, o Zuenir veio, jogou areia, e aí bateu a  dúvida. E se não for tão moleza assim? E se tiver de colocar traje de gala e salto dez pra produzir algo bem modesto que se assemelhe a uma crônica?

Em algum lugar, dentro do guarda-roupa, se as traças não comeram, tem uma estola de peles que ela nunca usou. E um salto agulha. Talvez sirva. Mas Deus me livre de se indispor com os ambientalistas! E se Greta Thumberg está esperando lá fora no escuro? É ruim, hein? Melhor buscar o cronicável no modesto âmbito doméstico, onde já tem bastante perrengue.

A propósito, a tia leu algum dia, em algum lugar (nunca se lembra) que Abraham Lincoln certo dia, foi surpreendido por um Ministro Inglês, engraxando os próprios sapatos. O Ministro, todo enfatiotado, se espantou: “Que coisa bizarra! Nós na Inglaterra não engraxamos os próprios sapatos”. Lincoln retrucou serenamente: “sapatos de quem vocês engraxam?”.

É isso. Tem muita gente engraxando os sapatos dos outros enquanto os seus, estão bem sujinhos. A tia fica implicada com isso. O assunto (ou a falta de) é dela, a crônica é dela e ninguém tem nada com isso. Gente com muito mais cancha já passou grandes perrengues e produziu belezuras. Por que não ela? Vejam só o compositor Oswaldo Montenegro. Enquanto ela, a caneta e o papel pelejam pra desovar suas humildes palavrinhas, Montenegro desova uma linda canção, do nada, do medo do vazio:

                                       “Meu amor

                                       Me ensina a escrever

                                       A folha em branco me assusta

                                       Eu quero inventar dicionários

                                       Palavras que possam tecer

                               A rede em que você descansa

                                Os sonhos que você tiver”.

Pois é. Só uma cançãozinha assim do nada. Me desculpem, mas se as pessoas se limitassem a xeretar na sua própria horta, sem palpitar na seara alheia iriam produzir não só muitas palavras saborosas, mas lindas pérolas como essa canção.

Não obstante Montenegro ter pintado o piano dele com um colorido punk que feriu o seu senso estético, a cronista recolheu-se à sua insigne ficância. O piano é dele. A crônica é dela. Melhor se limitar a engraxar seus próprios sapatos.

Ademais, se não sabem, o mestre dos mestres no gênero, Rubem Braga, fechou a questão: “se não é aguda, é crônica”. Dizer o contrário, quem há de?

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                          28/10/2021

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