A boa leitura
Solange Amado
Ela já leu em algum lugar, em vidas passadas, que a boa
leitura é um afrodisíaco poderoso. Não duvida. Ou melhor, concorda com o
afrodisíaco. Não sabe o que é uma “boa leitura”.
Tem gente que não lê ficção, ou só lê ficção, tem gente que
gosta de “fricção”, científica ou não. Ela
já leu calhamaços alentados de literatura erudita e literatura empolada.
Hoje, os neurônios ficam suados com muita informação e tem medo do curto
circuito. E a “fricção” não lhe parece mais assim tão estimulante. Tem canseira
de coisas muito sérias. Mas sem pontificância, cada um no seu quadrado.
Anda desconfiada que a boa leitura é aquela que estimula, que
dá tesão. O bom escritor tem de ser bom nas preliminares. Ela e o autor têm de
estar na mesma vibe. Amor à primeira vista. O que não significa paz e amor da
primeira à última página. Ela se encrespa também, nem sempre concorda, mas tem
de rolar um clima. Carece uma liga, uma “desadaptação criativa”, como diz
Alícia Fernandez. É preciso que o autor aperte a tecla certa. Muita dissonância
brocha qualquer leitor.
Casamento arranjado em literatura nem pensar! Isso é bom,
isso não é. Ela sente de longe o perigo quando alguém quer lhe arrumar um noivo
ideal, um par perfeito das letras. E às vezes, a única coisa que ela quer é uma
porraloquice, viajar na maionese de si mesma ou fora de si.
Na verdade, já está comprometida. Enquanto arrisca essas mal
traçadas linhas sobre o que é e o que não é boa leitura, tem uma vítima morta
no tapete da sala. O sangue fez uma poça no pé da mesa. Os repórteres, sempre
bisbilhoteiros e dispostos a atrapalhar já pisaram no sangue e destruíram um
bocado de pegadas. Ela, o escritor e a polícia já iniciaram as investigações.
Já têm os primeiros suspeitos Ela sempre faz uma investigação paralela, porque
esse escritor já comeu mosca anteriormente e é preciso cuidado com suas
narrativas. Não é pra se gabar não, mas muitas vezes, chega antes ao criminoso.
O autor ainda precisa das 350 páginas. Modéstia às favas, ela é boa em destrinchar os
indícios e os motivos para o crime. Gosta de uma certa marginália que rola em
todo suspense que se preze. Não tem culpa, é sua natureza de escorpião.
Definitivamente, ela é melhor em corpos em decúbito ventral
no tapetes da sala do que em tentativas de explicar o que é uma boa ou má
leitura. Ela só sabe quando encontrou uma.
Não manja de sexo dos anjos. Certeza mesmo ela só tem a de que gosta de
Marguerite Duras, do nariz do De Gaulle, da inteligência do Churchill, de
banana assada e do ócio criativo, seja lá o que isso signifique.
Tirante isso, o amigo, que só lê esporadicamente alguns
avisos em letras grandes no elevador, lhe telefona. Ele acha que ela é assim
uma viciada , sofre de alguma espécie de alcoolismo literário, e na síndrome de
abstinência de letras, encara até a lista telefônica pra matar a sede dessa
droga.
Assim, que Deus nos ajude! Como ganhou de presente uma edição
luxuosa, capa dura, mil páginas sobre Napoleão Bonaparte, vai repassar pra ela
esse cavalo de Troia. É muita generosidade esse presente de grego!
Pelo sim, pelo não, aceita impávida. Talvez, quem sabe,
resolva o seu dilema. A pista é quente. Pode não ser uma leitura afrodisíaca,
mas vai que esse calhamaço napoleônico seja a tão falada “boa leitura”? Ela não
garante que terminará essa odisseia antes de bater as botas, Mas vai contar pra
vocês. Podem esperar.
Maria Solange Amado Ladeira -22/09/2021
www.versiprosear.blogspot.com.br

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