O livro


Postado em 29/05/17
O livro
Solange Amado
Primeiro capítulo
Madame comprou um livro. Não só. Madame comprou um livro em francês. Mas não lê nadica nessa língua. Aliás, não lê nem em português. O negócio de madame é viajar e comprar. E me presenteia com o livro. Aí é que eu entro na história. Ela pede ajuda ao meu inglês periclitante para dar um rolé de compras numa rua, no interior da Alemanha. Madame é muçulmana. Grande parte da família está no interior do Líbano. Sempre viveu assim de maneira meio atípica. O marido no Líbano, ela no Brasil. Ele numa pequena aldeia, tocando uma fábrica de tecidos e ela no Rio de Janeiro, tocando um negócio próspero de confecção de cortinas para grandes conglomerados. Hoje, marido morto, negócio meio capenga por conta da crise, madame não desce do salto, vai “abatendo” (expressão dela) seus cartões de crédito em viagens e compras. O hábito do cachimbo.
Não carece da minha assessoria. Chega resoluta e não se faz de rogada. Entra na loja, pega o vendedor pelo ombro na maior familiaridade. O sujeito faz cara feia (alemães detestam essa intimidade dos latinos) e sapeca: “o negócio é o seguinte, neguinho, eu quero aquele ursinho ali, mas eu quero com um lacinho de fita no pescoço”. Vira-se para mim e diz: “traduza aí”. O vendedor responde que aquele ursinho é pra demostração, vai pegar um novinho no estoque. “Sem chance, meu amigo, esse aqui eu tenho certeza de que fala, o do estoque não sei se vai funcionar”. Impasse. Alemães não violam regras. Leva um tempão pro sujeito bandear pro jeitinho brasileiro, mas ela consegue.
E assim, vamos entrando e saindo de becos e lojinhas até nos perdermos inteiramente. E toca a comprar. Sapatos, bolsas, blusas, agasalhos. Tudo muito cheio de pedras coloridas. O gosto é meio duvidoso, mas eu acho tudo lindo, que mentir agiliza a parada. Numa das lojas ela se encanta com um monstrengo de blusa, o vendedor diz que não pode experimentar – não tem provador. Traduzo. Ela pega o sujeito pelo braço, força-o a virar as costas, e sem mais, troca as blusas ali mesmo. Estamos conversados.
Fico sabendo que só usa o véu muçulmano quando está no Líbano. Enquanto as cunhadas só usam severamente o preto, ela aparece com tudo muito colorido: “mato elas de inveja”. Vai embarcar para o Líbano nos próximos dias e o objetivo do périplo de compras é esse: matar a parentalha de inveja. Faz um leque com os cartões de crédito. Qual deles ainda não foi abatido?
Terminamos esse primeiro capítulo com os pés em pandarecos.
Segundo capítulo
Já na França sou atraída por um mercado de livros. Convido-a a ir comigo. Noblesse oblige. Ela aceita de imediato. E de imediato percebo meu erro. Alí, me sinto um pinto no lixo. Muita coisa boa por preços inacreditáveis. Enlouqueço. A insanidade me faz encher sacolas e engravida a minha mala de vez. Ela, ao contrário, é possuída por um tédio absoluto.
Coloco-a num café em frente e retorno ao meu prazer solitário. Quando finalmente nos encontramos, ela me estende um livro, meio sem jeito: “É para você. Não deve ser grande coisa. Custou só 1 euro, menos do que o xixi que fizemos no shopping”. Boa recomendação.
À noite dou uma sapeada no livro. Marca barbante. Sofrência tipo M. Delly. Decido que vou “esquecê-lo” no quarto.
Malas prontas, desço para esperar o táxi no hall do hotel. Alguns minutos depois, a camareira chega correndo e sorridente, numa mistura de francês e alguma língua africana me entrega o livro. Fazer o quê?  Decido que vou “esquecê-lo” na poltrona onde estou sentada. O táxi chega. Malas, casacos, correria. Nos acomodamos e o motorista dá a partida. Alívio! É quando o porteiro, um negro simpático do Gabão vem em disparada acenando em todas as direções. O carro para: “Madame, vous avez oublié votre livre!”. Lá está o lazarento do livro. Caramba!
Tento esquecê-lo na alfândega. Não colou. Tento esquecê-lo num dos terminais do aeroporto. Logo vem um velhinho: “Madame, votre livre!”
Ainda teve uma última tentativa na fila de embarque. Inútil. Ele voltou aos meus braços.
A coisa está nesse pé. Quem se candidatar a ser seu proprietário, não se acanhe. Informo que a obra não é grande coisa. Vale menos que um xixi no shopping. E pior. Ele se apegou muito a mim.

Maria Solange Amado Ladeira  -      31/05/2017
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